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sábado, 8 de fevereiro de 2014

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Interlúdio (II)

APONTAMENTOS PARA UM ESTUDO DO MEIO (SEGUNDO BERQUE)

Deixemos um pouco de lado, então, a história dos Colégios Militares. Procuramos contá-la de forma muito resumida, apenas sinalizando como se constrói uma identidade baseada em uma pedagogia de aretês (1), a qual chamamos de patronímica. O rastreamento desse argumento liga a construção da identidade do Exército – muito mais nova do que o uso da “invenção das tradições” pretende nos fazer crer – com o estabelecimento de uma rede de ensino de educação básica destinada à família militar que, de um discurso original apoiado na justificativa assistencial (em um cenário em que só seria possível a solução assistencialista) envereda pela finalidade preparatória, essa sim concreta e eficientemente articulada com os interesses da Força desde o fim do século XIX.

O que mudou, desse passado que as diversas memórias já tornaram idílico, à realidade do século  XXI? A rede conta hoje com doze unidades, mais de catorze mil alunos; já fazem mais de vinte anos que as meninas cruzaram os portões, cravando fundo no coração das representações guerreiras (2); uma verdadeira finalidade assistencial brotou da política implementada nos anos noventa do século passado; e a função preparatória desviou-se significativamente da reprodução endógena da classe militar para o prosseguimento em todas as destinações do ensino superior.

Persistem, entretanto, os mecanismos – dispositivos, segundo o tratamento que viemos dando ao conceito nesta tese – atuando na subjetivação desse aluno da educação básica. Persistem as fardas (que agora sabemos como foram instituídas); persistem as normas de gestos, costumes, posturas (que agora reconhecemos a origem). Persiste o código de honra, como núcleo nervoso institucional e que remonta, como rapidamente procuramos apresentar, ao trabalho do Marechal José Pessoa, na primeira metade do século XX.

Tratemos, agora, do espaço e do uso do mesmo. CASTRO (1990) nos fala da criação de certo espírito militar como imprescindível à solidez do meio castrense e, partindo de GOFFMAN (2001), se apropria do conceito de instituição total para lembrar como estas instituições rompem com a separação moderna entre os espaços e os tempos, segundo a qual as pessoas dividem suas vidas entre vários ambientes – para descansar, trabalhar, se divertir, etc. – e entre vários convívios – com amigos, parentes, colegas de trabalho –, e passam a concentrar os espaços e tempos individuais dentro de uma mesma planificação racional totalmente controlada, supostamente atendendo ao interesse da instituição total. Tal processo, nas palavras de GOFFMAN (2001, p.24), produz “estufas para mudar as pessoas: cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu”.

Castro estabelece diversas ressalvas à apropriação do conceito, dentre elas o fato de que não há – no caso estudado por ele, que é o da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), em 1987 – nítida separação entre as equipes dirigentes (no caso, os oficiais já formados) e os “internados” (cadetes que serão oficiais): todos vivenciam o mesmo ambiente e estão igualmente submetidos à formatação do tempo e do espaço.

Interessa-nos avançar, agora, às possibilidades de entendimento particular sobre a noção de espaço, sobre a relação entre o indivíduo e o meio no qual vive. Em BERQUE (2010a), podemos entender a mediania entre a localização física do corpo – que responde pelo topos – e o campo existencial do ser – que é a chôra:
“[a mediania] concretamente, constituída pelo nosso meio social(sendo a outra “metade” o nosso corpo individual), que como um sistema eco-tecno-simbólico, excede às limitações dos corpos individuais tanto no tempo como no espaço. Esse momento estrutural da existência humana funda a territorialidade humana”.
Somos, portanto, nossos lugares, que nos constituem e constituíram, que carregamos conosco e projetamos nos novos ambientes que ocupamos. Porque estivemos em certos lugares (mais do que estivemos, porque fomos, porque existimos em certos lugares), somos lembrados neles, fazemos parte deles para outras pessoas. Da mesma forma, estes lugares, a experiência que vivemos neles, está em nós introjetada, não como lembrança – algo que, efetivamente, só está em nós e só a nós pertence – mas como uma relação estabelecida na qual a vivência realmente está nas coisas que nos cercam (BERQUE, 2010a).

Esta abordagem, tributária de uma linha de pensamento oriental não constituída nas dicotomias mente x corpo, homem x natureza, nos abre a possibilidade de estudar nossa consciência espacial (MARIA, 2010), nossa relação com o espaço em outras bases. A mediania apresentada acima corresponde a um tratamento entre o objetivo (considerando apenas o topos aristotélico, o espaço localizado totalmente fora de nós) e o subjetivo (considerando apenas a chôra platônica, a dimensão existencial), a que o autor denomina de trajetividade (3).

O tratamento dado ao espaço é particularmente fecundo para nosso estudo, porque salta aos olhos a busca, pelo Exército, em materializar a experiência da instituição, este ethos militar – o espírito militar estudado por CASTRO (1990) –, no entorno em que estão situadas as unidades militares e, particularmente, as escolas de formação. Não sendo oficialmente uma delas, mas – como a predominância original da finalidade preparatória, voltada à reprodução dos quadros, demonstrou – oficiosamente atendendo a esta função, os Colégios Militares estão impregnados dessa materialidade da história institucional, que é tatuada em dísticos nas paredes; que emerge do solo em bustos de vultos históricos; que denomina campos, pérgulas, salas de aula; que é exercitada em trajetos percorridos em datas específicas.

A não gratuidade da ocupação do terreno; certo estilo que se percebe nas organizações militares, que não se explica pela funcionalidade racional da distribuição do espaço; tudo isso remete ao desejo de carregar a instituição conosco, de habitá-la em sentido amplo.

E o corpo, especialmente – que nos interessa em particular para esta tese –, os símbolos, a história, não é apenas vestida, mas investida, e os militares se tornam partícipes, portadores, porta-vozes de uma experiência que é muito maior que cada um deles, individualmente (4). As fardas estão, o tempo todo, declarando a história, as regras, o código de honra; trazem o espaço, o terreno, seja nas cores como nos tecidos e texturas, não apenas na intenção do emprego funcional, mas porque estas características são repositórios da identidade, do ethos, do espírito militar (5).

Esta leitura do espaço pode derivar, ainda, para outra direção.

EUGENIO (2012) chama a atenção para a emergência de um tipo de subjetividade observado nos jovens por ela pesquisados que, quanto ao espaço, parece se
“desenhar em torno do não-lugar (AUGÉ, 1994) cada vez mais distribuída, virtualizada e desterrada, que, de maneira aparentemente contraditória, assim se operacionaliza antes pelo (re)situar-se incessante, por estar cada vez mais ‘cheia de lugar’, habitando não apenas os espaços, mas também as passagens” (EUGENIO In ALMEIDA e PAIS, 2012, p. 215).
Assim é que os jovens observados parecem não ter abandonado seus espaços, mas os incorporado. Os processos de subjetivação parecem se ressituar em direção a um lococentrismo, ou seja,
“(...) o agente criativo contemporâneo emerge em relação com o entorno – o lugar, a máquina, o outro, a tecnologia – distribuindo-se em seus predicados, estes também sobressaindo em gradações variadas, a depender da posição da relação (no caso, do projeto ou trabalho em que se está envolvido no momento)” (idem, p.227-8).
A abordagem não dicotômica de Berque nos possibilita, assim, pensar o espaço de modo relacional, seja no uso que dele faz a instituição militar, quando desdobra sua história, seus valores, sua identidade no terreno que ocupa e no próprio corpo de seus profissionais, nas fardas, adereços, em toda uma economia de gestos, postura, linguagem; seja no uso de certa parcela da juventude, que desterritorializa o espaço para carregá-lo consigo, adequando-o a uma funcionalidade contingente (6). Este processo da juventude, como propõe EUGENIO (2012), serve a uma criatividade situada, que não ocorre no sujeito, mas a partir de um desdobramento de conexões, de relações, “na própria ação de distribuir-se no mundo, espalhar-se nos espaços ocupados (...). Criar é algo que acontece no desinsularizar-se”.

*****

(1) Aretês eram as virtudes para os gregos. O ensino da mitologia, como na divulgação da Ilíada e da Odisseia de Homero, se prestava à afirmação de tipos ideais, como a figura de Ulisses (representando a sabedoria), de Aquiles (a coragem) e de Penélope (a fidelidade). Fazemos, aqui, um paralelo entre esse uso da História como divulgação de idealizações que interessam ao Estado e a prática institucional do Exército em cultuar seus vultos históricos e de materializá-los em heráldica.

(2) Sobre a “pedagogia do guerreiro”, ver: MAGALHÃES (2010).

(3) Este autor faz um uso particular de certas expressões, o que nos impõe explicitá-lo: a dimensão objetiva, física, do espaço, é tratada como ambiente (environnement); a dimensão subjetiva, fenomenal, é a paisagem (paysage); a relação que é, ao mesmo tempo, física (objetiva) e fenomenal (subjetiva) é o meio (millieu humain), também chamado de relação medial ou mesológica (MARIA, 2010, p.59).

(4) E a grande questão que daí emerge é, justamente, se os alunos aceitam – e, aceitando, como o fazem – essa mobilização do espaço em que vivem, do ecúmeno (BERQUE apud MARIA, 2010) a favor da instituição, ou se apropriam do espaço, não em sentido de oposição, mas de uma criatividade situada (EUGENIO, 2012) da qual trataremos mais à frente.

(5) Um rápido exemplo: as fardas camufladas seguem um padrão nacional que faz referência a certo tipo de vegetação encontrada no território brasileiro; entretanto, seu uso não é restrito às atividades em campanha, nas quais as cores favoreceriam o emprego militar. As fardas camufladas são utilizadas no perímetro urbano, em atividades administrativas e, mesmo em campanha, a diversidade da vegetação nacional não justifica o padrão único. Entendendo a farda como materialização do ethos militar, e dentro do millieu humain de Berque, entretanto, podemos perceber o padrão camuflado como o território brasileiro que o militar carrega em si próprio, identitariamente.


(6) “Ou seja, os diversos funcionamentos contemporâneos que desenham a tendência ampla a ocupar, a espalhar, reverter e transparecer que estamos acompanhando afetam não apenas os espaços mas os processos de subjetivação. Se os espaços tendem à transparência, a subjetividade tende à exteriorização e a operar por um constante exercício de explicitação; se os espaços tendem à reversibilidade e ao constante redesenho, a subjetividade faz-se também por operacionalização e conexão. Simultaneamente, um pensar e um fazer, a criatividade relacional e situada – que é um atravessamento comum nos processos de subjetivação dos diferentes agentes que encontramos – é uma operação de geração de clareza sobre o que se tem disponível (materiais, informações, técnicas e tecnologias, etc) de ‘desfragmentação’ e desatrelamento dos usos, funções e sentidos, e de reconexão, recombinação e rematerialização em novos acontecimentos ou produtos” (Idem, p.228-9).

Capítulo 2: Historiando ... (5ª parte)

OS COLÉGIOS MILITARES NO SÉCULO XX

É importante lembrar que, quando desse investimento em símbolos, dessa sistematização de valores em uma pedagogia, começava o processo de expansão dos Colégios Militares, rumo à constituição da rede que, hoje, conta com doze unidades e quase quinze mil alunos.

O CMRJ viveu, de 1889 a 1912, um ciclo de três fases que FIGUEIREDO e FONTES (1958) chamaram de “período crítico”: de 1889 a 1894 – expansão; 1894 a 1906 – ampliação; e 1906 a 1912 – reputação. Neste período, ainda que contrariando o discurso oficial que o justificava como assistencial, ou seja, voltado para o amparo à família militar, o CMRJ se estabeleceu como uma escola preparatória (CUNHA, 2006 e 2012) ocupando aquele espaço destinado, hoje, ao Ensino Médio. Foge ao escopo dessa tese contrapor as finalidades desse nível de ensino (preparatório x assistencial), porém vale lembrar que não se pensava, naquela época, em um nível médio com finalidade intrínseca, mas, apenas, como preparação para o ensino superior. O CMRJ preparava precipuamente, assim, para a Escola Militar e, nesse impedimento, para outros destinos superiores (1).

A finalidade preparatória sobrevive até os dias de hoje, não mais configurando os Colégios Militares como pré-vocacionais e como instrumentos de seleção de quadros para a renovação da caserna, mas como definição e síntese para uma identidade de excelência pautada na exclusão, ou seja, como uma elitização que afirma, ainda que subliminarmente, que os Colégios Militares são para poucos. Nos idos do fim do Império e da República Velha se estabeleceu um ethos de extrema exigência intelectual para o aluno dos Colégios Militares, o qual, em relação com toda a simbologia meritocrática que o Exército do século XX adotou – partindo do trabalho do Marechal José Pessoa –,justificou o caráter elitista dos Colégios, em contraposição a sua destinação primeira como escolas assistenciais.

Há que se enfatizar, sempre, a impossibilidade de concretização de uma proposta assistencial – nos termos em que ela é formulada, na educação dos dias de hoje – no contexto daquela época. O oposto possível ao ensino elitista que a meritocracia respaldava era o assistencialismo de que já tratamos nesta tese: não resgatar o aluno com dificuldades inerentes a sua situação de classe ou, na leitura específica que fazemos do caso militar, inerentes às vicissitudes da caserna; não resgatá-lo, mas escondê-lo, como aos órfãos, loucos, miseráveis, idosos, doentes. Assistencialismo como higienização da sociedade, como ordenamento pela ocultação (das vistas, do contato) e, in extremis, pela eliminação.

O discurso que tem origem nas palavras do regente Araújo Lima, em 1850, de se criar um colégio como medida de justiça aos que se sacrificavam a serviço da Pátria, passou a atender a finalidade de preparar – priorizando os filhos de militares, no que se sistematizou a endogamia tradicional da reprodução da caserna – os candidatos à Escola Militar. Aos olhos de hoje, essas duas destinações são, no mínimo, conflituosas: o amparo aos dependentes tem a ver com um direito de acesso à educação que só alcançou concretização efetiva, para toda a sociedade, no último quinto do século XX; a preparação, por outro lado, tem a ver como rigorosa seleção para o preenchimento de cargos públicos.

A meritocracia, enquanto naturalização do fracasso escolar, justificou a exclusão, como nos atestam os números: em 1912, contando com um total de novecentos discentes, o CMRJ só diplomou seis. No plano curricular, também é possível perceber o discurso preparatório sobrepondo-se ao argumento assistencial, como na lamentação do Major Professor Arivaldo Silveira Fontes quanto às reduções de conteúdo de matemática ocorridas entre o currículo inicial e o da década de 1950:
“Nota-se perfeitamente a intensidade do estudo da Geometria (9ª aula) abrangendo um número considerável de curvas. A conchóide, a cissóide, a ciclóide, a limaçom de Pascal não fazem parte do atual programa de Matemática. Revela nota, porém, que várias dessas curvas são hoje estudadas na cadeira de Desenho. Na Álgebra o currículo se estendia à resolução algébrica das equações de 3º e 4º graus (hoje abolidas do programa do curso secundário) e à resolução numérica das equações. Em contraposição não se fez referência ao Binômio de Newton (e sua generalização), à análise combinatória, à teoria dos determinantes (ressaltando as múltiplas aplicações), aos números complexos, ao estudo das funções dos limites, da continuidade. Vá lá que seja que os últimos assuntos citados foram levados para o Cálculo Infinitesimal e que este era estudado na Escola Militar” (FIGUEIREDO e FONTES, 1958, p.53).
 No regulamento de 1922, a rede constava de quatro unidades: o CMRJ; o CMPA (Porto Alegre, 1912) (2); o Colégio Militar de Barbacena (1912) (3), hoje Escola Preparatória de Cadetes do Ar (EPCAr); e o CMF (Fortaleza, 1019)59. Reforça o argumento quanto à sobreposição dafinalidade preparatória em relação à assistencial, o fato desses colégios transitarem de “colégios” a “escolas preparatórias” sem profundas alterações curriculares.

O ciclo expansionista seguinte ocorreu sob o desígnio do Marechal Lott, com as criações dos Colégios de Belo Horizonte (1955); de Salvador (1957); de Curitiba (1958) e do Recife (1959). A próxima expansão só se deu nos anos de 1970, com a criação de Colégios em Manaus (1971) e Brasília (1978), bem como da criação de um órgão de direção nacional, a Diretoria de Ensino Preparatório e Assistencial – DEPA (1973) (4). Nos anos de 1980 a rede sofre redução, pelo fechamento dos CMBH, CMR, CMC e CMS, fruto do conflito de finalidades: a função preparatória, como encaminhamento de dependentes à carreira das Armas perde eficácia, bem como não estava delineada, ainda, a função verdadeiramente assistencial.

O começo dessa definição – que vigora até os dias de hoje – aconteceu na gestão do General de Exército Zenildo Gonzaga Zoroastro de Lucena como Ministro do Exército, o qual reabre, em 1993, os Colégios que estavam fechados, bem como cria as unidades de Juiz de Fora, Campo Grande (1993) e Santa Maria (1994).

*****

(1) Nos primeiros vinte e dois anos de existência, o CMRJ formou 410 alunos, assim distribuídos: Exército – 166; Marinha – 105; Medicina – 42; Engenharia civil – 32; Direito – 31; Outras profissões – 34 (FIGUEIREDO e FONTES, 1958, p. 60)

(2) Tornou-se a Escola Preparatória de Porto Alegre em 1938, retornando como Colégio Militar em 1962.

(3) Extinto em 1925, reaberto como EPCAr em 1949.

(4) Passado ao Ministério da Educação e Saúde, com o nome de Colégio Floriano, em 1938, e ao estado do Ceará, em 1940. Retornou ao Exército como Escola Preparatória de Fortaleza, em 1942 (FIGUEIREDO e FONTES, 1958) e como Colégio Militar, em 1962.

(5) Hoje, Diretoria de Educação Preparatória e Assistencial.

Capítulo 2: Historiando ... (4ª parte)

O EXÉRCITO DO MARECHAL JOSÉ PESSOA

CARVALHO (2005) chama nossa atenção para as características do Exército na Primeira República. Infere-se que a oficialidade era mais jovem e mais pobre que aquela substituída na queda do império. Estavam no poder os “doutores” de Benjamim Constant, ocupando uma estrutura piramidal de base muito larga, ou seja, fortemente apoiada em tenentes. Estes oficiais ocupavam a maior parte das funções da oficialidade, criando um cenário, pela baixa perspectiva de mobilidade na carreira, favorável à rebelião.

Seu positivismo era muito peculiar. Enquanto que, para Benjamim Constant, o cidadão seria o soldado em armas até que “[o] progresso, produzido pelo avanço do regime industrial, tornaria os exércitos entidades inúteis e faria com que fossem recolhidas ao museu da história as armas que se empregam como elementos de destruição” (CONSTANT apud CARVALHO, 2005, p.39), para aquela jovem oficialidade o Exército deveria exercer uma função moderadora dentro da sociedade.

Distribuindo-se em tendências mais ou menos interventoras, o Exército da República Velha se consolidou como organização capaz de pensar e executar uma política de defesa, para o que foi necessária a extinção da Guarda Nacional, subsequente à criação do alistamento universal e do sorteio.

Os efetivos aumentaram e se distribuíram melhor no território brasileiro; foram melhor equipados, treinados e formados, sobre o que não cabe a esta tese aprofundar as inúmeras reformas ocorridas nos currículos das escolas militares (1). Consolidou-se um perfil de Força Armada intervencionista, não a partir de seus componentes (em particular, dos tenentes), mas do todo – o intervencionismo dos generais ou do Estado-Maior, como sugere CARVALHO (2005), lembrando que, enquanto na França da revolução a sociedade queria entrar no Exército, tirando-o da nobreza, no Brasil foi o contrário: o Exército, já apartado das oligarquias, queria seu lugar na sociedade.

É neste cenário que temos de colocar a figura do Marechal José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque.

 O Marechal José Pessoa nasceu em 1885 no município de Cabaceiras, interior da Paraíba. Em 1903, ingressou na Escola Preparatória e de Prática do Realengo, Rio de Janeiro. Com o fechamento da Escola Militar da Praia Vermelha, em 1904, cursou sua formação de oficial em Porto Alegre. De sua atuação como oficial, nos interessa destacar o período de três anos que passou na Europa, em estudos, no qual – como sugere CÂMARA (2011) – teria amadurecido a visão de um Exército ligado à sua história, referenciado em suas tradições, e, ao mesmo tempo, não descuidado dos avanços tecnológicos. Este visão, a qual nos interessa associar com a pedagogia patronímica em formação – da qual será o principal ideólogo – será posta em prática, por ele, com imensa riqueza de detalhes.

A partir de 1931, como comandante da Escola Militar do Realengo, o Marechal José Pessoa implementou um vasto conjunto de códigos centralizados na figura do Duque de Caxias. Como já citado aqui, a turma de oficiais formada em 1925 recebeu como patrono este oficial, inaugurando a tradição, de origem francesa, das homenagens que servem de modelo. Em seu  comando, o então coronel José Pessoa partiu da idealização das virtudes do Duque de Ferro para implementar um programa de formação afetiva que norteou o Exército até os dias de hoje:
“A aplicação dessa forma ideológica resultaria na prática de um conjunto de ações educacionais de natureza predominantemente afetiva. A adoção dessas ações, por seu turno, conduziria à consciência da valorização moral, ética, intelectual e profissional do futuro oficial. Em primeira instância, atingiria o espírito militar do próprio cadete; em círculo maior, o coração e a mente do público interno do Exército e, de forma mais abrangente, o coração do público externo do Exército, na fixação do significado do valor nacional do papel do oficial, o qual chegou a entrar para o vocabulário popular com a expressão ‘Caxias’ para designar pessoa de comportamento correto e mesmo rigoroso consigo e com o trato das coisas públicas na sociedade brasileira” (CÂMARA, 2011, p. 89).
A seguir apresentaremos, em tópicos sucintos, os principais itens dessa reforma simbólica que repercutiram na iconografia da Força, chegando à modelização dos gestos, vestes, costumes e comportamentos nos Colégios Militares.

O título de cadete (2) – como já mencionado aqui, este título remonta ao exército português, tendo vigorado no Brasil de 1811 a 1889. Foi extinto com a proclamação da república, por sua óbvia referência à nobreza e à aristocracia consanguíneas do Império. Retomado pelo Marechal, o título – agora transitório – passa a representar um conjunto de valores associados à Caxias (“cadetes de Caxias”) que o aluno da escola militar deveria cultuar. Não mais associado ao berço, mas ao mérito – “(...) outorgado não pela nobreza hereditária, mas pela nobreza da inteligência, da cultura e da formação moral, baseada na integridade, na probidade, na honestidade e na lealdade” (CÂMARA, 2011, p.93)– o cadetismo se encaixa nessa invenção das tradições a serviço da pedagogia patronímica, já que atualiza um passado histórico julgado interessante à construção de um novo código de valores.

Os uniformes – até então, o fardamento dos alunos não se distinguia do geral das fardas do Exército. Coerente com seu plano geral de distinção para valorização dos cadetes, o Marechal José Pessoa propôs um vestuário que tornasse o cadete inconfundível e reestabelecesse seus liames históricos, notadamente pelos atributos e emblemas da indumentária militar, tudo enquadrado nos mais severos princípios da heráldica (CÂMARA, 2011, p. 93). Fortemente amparado nos uniformes de 1852 a 1860, os aspectos de tecido, corte, cor e adereços implementados na década de 1930 remetem a um conjunto de valores apoiados no passado e foram defendidos em diversas vezes, tempos depois, como fundamentais para a preservação da identidade da Força Armada.

O brasão do cadete – este símbolo criado também pelo Marechal reúne várias referências:
 “(...) um escudo orlado de azul-turquesa, tendo em campo de ouro operfil estilizado das Agulhas Negras e, em abismo, uma torre de ouro. O mote inicial ‘Escola Militar’ posteriormente foi substituído por Agulhas Negras, em azul fitão em ouro; a estrela representativa da Escola, em ouro na parte inferior, lanças e fuzis em riste e um canhão por trás do terço inferior do escudo, por sua vez emoldurado com folhas de carvalho em sua própria cor” (CÂMARA, 2011, p.99).
 É importante lembrar, em proveito do argumento aqui desenvolvido, como foram campo de disputas as tentativas de modificação desse símbolo, ao longo da história recente do Exército. O brasão original detinha a inscrição “Escola Militar”, sem fazer referência ao bairro do Realengo, RJ, no qual estava localizada a escola, porque se queria valorizar o ambiente de formação da oficialidade, sem fixá-lo em um espaço que, já então, se pretendia mudar; na década de 1970, o brasão seria “desarmado” das lanças, fuzis e canhões (referências às armas de cavalaria, infantaria e artilharia), em uma tentativa de reequilibrá-lo com as demais armas, quadros e serviços (comunicações, material bélico e intendência) excluídos do desenho original; o desenho em uso, hoje, retoma os armamentos, bem como se embasa na inscrição “academia militar”, fazendo referência à AMAN.


O espadim – réplica em tamanho menor da espada usada pelo Marechal de Ferro na pacificação de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul (1842 – 45), no comando contra Oribe e Rosas (1851 – 52) e na Tríplice Aliança (1865 – 70). O espadim é entregue em cerimônia de confirmação aos cadetes do primeiro ano, e devolvido à AMAN na primeira parte da cerimônia de declaração de oficiais, no quarto ano. O ato de recebimento é acompanhado de um juramento solene que enfatiza a pedagogia patronímica: “Recebo o sabre de Caxias como o próprio símbolo da honra militar”.

O Corpo de cadetes – sua criação objetivou distinguir em um organismo próprio o que estava diluído, na forma do “corpo de alunos”, dentro do estabelecimento de ensino. No “Corpo de cadetes” – criado em 25 de agosto de 1931, com a presença do chefe do governo provisório, Getúlio Vargas – o Marechal José Pessoa passou a ter melhores condições paraimplementar o código de valores desejado, de controlar hábitos e comportamentos pela manutenção da disciplina. Esta disciplina deveria ser garantida pelos próprios cadetes, agora escravos de sua dignidade pessoal. Como mais um símbolo, o corpo de cadetes possibilita certo sentimento de pertença aos que conseguem ingressar nele, se manter e dele sair habilitados ao oficialato, fazendo parte de todo esse projeto de “aristocracia do mérito” buscado pelo Marechal.

 É importante destacar, ainda que sem maior espaço para aprofundamento, o grande projeto do Marechal José Pessoa para a fundação –muito mais do que a reforma que conduziu na Escola Militar do Realengo ou, até mesmo, da criação da Academia Militar das Agulhas Negras – da identidade do militar do Exército, no século XX. Tendo em mãos o principal centro disseminador da cultura desse oficialato, que é a escola de formação, o Marechal estendeu sua preocupação, não só pelos símbolos planejados e implementados de que fizemos referência acima, por um rol muito mais extenso – e sempre coerente – de componentes, os quais podemos enfeixar como uma “disciplina militar” (3) até então inédita.

Porque nunca é demais lembrar que os atributos que associamos, hoje, ao ethos militar não tem lugar no Exército do século XIX, ou lá se encontram com menor intensidade. Por conta da formação conjunta com a dos engenheiros; das mudanças constantes dos currículos nas escolas; dos conflitos entre escolas de pensamento (TREVISAN, 2011); dentre outros motivos, é somente a partir da intervenção do Marechal José Pessoa que se sistematizou uma pedagogia patronímica em que toda uma constelação de símbolos é orquestrada em favor da identidade do militar do século XX.

As preocupações do Marechal José Pessoa chegaram ao ponto de procurar inserir o cadete em um ambiente social julgado favorável, bem como de afastá-lo de outros ambientes. Assim é que, como assinala CASTRO (2002), a direção da Escola Militar fazia contatos com clubes de prestígio da época, como o Fluminense e o Tijuca Tênis Clube, buscando incluir os cadetes em festas, bem como desestimulava o comparecimento dos mesmos em festejos suburbanos no Méier e em Bangu.
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(1) Sobre o assunto ver, principalmente, MOTTA (1998).

(2) "No sentido militar do termo, ‘cadete’ era o filho destinado às Forças Armadas para exercer postos de mando, em nível de oficial. Em 1757, passou a ser adotado em Portugal unicamente com sentido militar; representava o filho mais velho do nobre, a serviço do rei. Com a vinda da Família Real portuguesa para sua colônia na América, foi introduzido no Brasil” (CÂMARA, 2011, p. 91).

(3) “Disciplina” que ele opunha à “politica”: se a primeira une, a segunda divide (CASTRO, 2002): “Não sou político. Não quero ser. A nossa maneira de fazer política tem sido a gênese de muitas infelicidades para o país (...) Ao assumir esse comando, reuni mestres e cadetes, advertindo-os de que seria desaconselhável o trato de assuntos em desacordo com a disciplina militar, separando-me completamente dos políticos. Só não chamo a isso um divórcio porque nunca estivemos juntos. Não se deve inferir daí que eu os condene. Absolutamente (...) Mas a política, para os políticos e mais ninguém” (MARECHAL JOSÉ PESSOA apud CASTRO, 2002, p.41).

Capítulo 2: Historiando ... (3ª parte)

A ORIGEM DO COLÉGIO MILITAR DO RIO DE JANEIRO

Tomamos, então, a Guerra do Paraguai como esse momento de clivagem, de reorientação de tensões no qual surge uma nova Força Armada rumo a sua profissionalização. Ao mesmo tempo, procuramos destacar o episódio como matriz de referências simbólicas que serão administradas posteriormente, em uma pedagogia voltada à criação, à fixação e à reprodução de uma identidade para o novo Exército.

Na apropriação dos vultos históricos como referências de atitudes, costumes e valores, também ficam claras as escolhas, as trocas, como quando a figura de Osório – herói da guerra em questão, associado aos valores caros à instituição (coragem, intrepidez, intemperança), porém menos próprios ao patronato do Exército – é substituída pela de Caxias, herói de outro molde, figura associada à lealdade, à estratégia e à necessidade de construção da unidade nacional. É igualmente ilustrativa a ascensão da longínqua Batalha de Guararapes como nascedouro da nacionalidade brasileira em articulação com o nascimento do Exército: trata-se de ressaltar o caráter plural e democrático da constituição da Força, sua finalidade de defesa da Pátria contra o gigante invasor estrangeiro.

Reaproximamo-nos, agora, das origens do CMRJ, no tempestuoso fim do século XIX.

Segundo CUNHA (2006), a criação de instituições asilares foi um movimento internacional da segunda metade do século XIX. Ainda com esta autora, devemos nos lembrar de como estas criações se enquadram dentro do conceito de “instituições totais” (GOFFMAN, 2001), no que estas se destinam ao isolamento de certos tipos de pessoas (velhos, cegos, órfãos, indigentes) no período da Modernidade. Podemos nos lembrar, também, do combate à “ambiguidade” formulado por BAUMAN (1999), como um marco desse mesmo período e, por fim, do tratamento dado por FOUCAULT (2002) às instituições disciplinares.

A esfera militar estava sujeita, também, ao mesmo pensamento, o qual embasa a criação do Asylo dos Voluntários da Pátria, em 1868. Como instituição destinada, prioritariamente, aos militares, já reconhecidos como desfavorecidos dentro da sociedade – situação essa que a Guerra do Paraguai em curso referendava – o Asylo foi financiado por subscrição popular. Ele é importante, no desenvolvimento de nosso argumento, como concretização de certo pensamento assistencialista daquela sociedade, que vem crescendo em relação ao Exército, desde o período regencial: já o regente Araújo Lima, marquês de Olinda, em decreto de 1840,
“procurou estabelecer no Arsenal de Guerra da Corte um colégio paraos filhos necessitados dos capitães e oficiais subalternos do Exército,medida extensiva a todas as províncias onde houvesse arsenais com estabelecimentos de aprendizes menores” (CUNHA, 2006, p.88).
Ao mesmo tempo em que, desde essa época, emerge a ideia de criação de um colégio para os filhos dos militares em uma perspectiva filantrópica, esse pensamento se vai impregnando do teor preparatório, entendido como a finalidade de reprodução do estamento militar principalmente a partir dos seus próprios quadros (reprodução endógena).

Quando da proposta do regente Araújo Lima, a formação militar não se encontrava regulada por legislação que impusesse certa escolaridade e formação específica ao futuro militar. Essa regularização se deu com a reforma de 1850, a qual normatizou a progressão hierárquica e inseriu a formação acadêmica como necessária para as promoções.

É nesse período de profissionalização incipiente, seccionado pela Guerra do Paraguai, que começa a ganhar força a contenda que mencionamos como “doutores x tarimbeiros”. De um lado, o entendimento da formação do oficial como necessariamente sólida em ciências exatas, “nas matemáticas”, para fazer frente ao status dos “doutores” de anel no dedo, assessores da Monarquia em diversos níveis (as primeiras escolas militares, que formavam também os engenheiros do Império, embasavam este entendimento); de outro lado, o entendimento da formação do oficial como necessariamente prática – ou teórico-prática, dentro de um campo específico de conhecimentos bélicos – feita dos “saber-fazeres” que a Guerra do Paraguai, em andamento, indicava como imprescindíveis. Como exemplo dessa tensão:
“A escola é, na realidade, uma instituição onde se ensinam as ciências físico-matemáticas em grande escala; (...) mas, por ventura,os moços que saem com carta do curso completo da escola são verdadeiros oficiais? (...) Não convirá que os oficiais, quando saírem das escolas, saibam tudo quanto diz respeito à sua arma? Poderão eles ter essa instrução pela teoria somente que se ensina na escola?”(resposta do Ministro da Guerra Manoel Felizardo ao Deputado Ângelo Ramos, membro da oposição liberal ao governo conservador) (1).
E mediando ambas as extremidades desse cabo-de-guerra, a oposição liberal à própria possibilidade de um exército se tornar proeminente em uma sociedade entendida como agrícola:
“Um país essencialmente agrícola, como o nosso, tem-se visto condenado a uma despesa de sangue, que faz desejos de voltar os olhos para não chegar-se a conhecer-se a extensão dos sacrifícios! Um país essencialmente agrícola com aspirações a uma vida puramente civil, que é a que lhe poderia garantir a liberdade, vê-se a braços com um grande exército, com organizações militares fortes,que no presente e no futuro ameaçam a sociedade!” (argumentos do Senador Silveira da Motta para requerer uma comissão de inquérito do Senado para investigar as causas do prolongamento da Guerra do Paraguai) (2).
Amadureceu, então, a ideia de um colégio militar que, mesmo se valendo do apelo assistencialista mais geral, viesse a preencher o vazio de formação provocado pela ausência do nível escolar médio no Brasil. Os “preparatórios” eram aquelas escolas cujos cursos, de extensão variada, preenchiam os pré-requisitos necessários ao acompanhamento do nível superior, fazendo às vezes do que hoje temos como Ensino Médio. Assim, um colégio militar prepararia, principalmente dentro do universo de dependentes de militares, aqueles candidatos à Escola Militar, viabilizando a melhora da formação intelectual desses quadros.

É importante, a partir deste ponto, começar a desdobrar todas as consequências da clivagem entre um ensino preparatório (nascido das intenções descritas acima e expandido para a preparação ao acesso, não só ao oficialato, mas a todas as formações de nível superior), e um ensino assistencial (voltado para o apoio à família militar e distinto do que seria um ensino assistencialista, nos moldes “asilares” aqui mencionados) (3). Interessa-nos salientar que é essa destinação preparatória que configurará, fortemente, a identidade dos colégios militares ao longo do século XX.

A Guerra do Paraguai, ainda que fundamental – pela inédita mobilização nacional que promoveu (4) – para a definição dos rumos do Exército, teve o efeito de adiar, por causa de sua duração, a criação de um colégio militar, e, neste adiamento, calaram-se as principais vozes em defesa de sua criação. Com a rotação de gabinetes que acompanhou o Império, assumiu a pasta da guerra o Conselheiro Thomaz José Coelho de Almeida, que havia sido Ministro da Agricultura no último gabinete de Caxias (1875), e que retomou a ideia de criação do colégio militar.

Espelhado no modelo francês (Prytanée Militaire de La Fleche), foi criado pelo Decreto nº 10.202 de 9 de março de 1889 o “Imperial Collegio Militar”, com o objetivo precípuo de “proporcionar aos filhos de militares ou àqueles que desejarem seguir a carreira das armas os meios de receberem instrução, que em poucos anos lhe abra as portas das Escolas Militares do Império” (5).

É importante retornarmos à questão da clivagem entre os ensinos preparatório e assistencial, para os situarmos melhor no contexto da época e caminharmos para o esclarecimento sobre como estas duas finalidades se estabeleceram como polos de identidade para todo o Sistema Colégio Militar do Brasil (SCMB) nos dias de hoje.

Para a época, o conceito de “assistencial”, como o podemos compreender hoje – uma oferta de educação básica aos dependentes da família militar, que é diferenciada porque pretende resolver os problemas de aprendizagem especificamente provocados pelas características da profissão castrense (constantes transferências dos responsáveis, implicando em descontinuidade na formação das crianças e adolescentes; menor disponibilidade dos pais, por conta das demandas da carreira, para auxiliar os filhos nos estudos; ausência de capital cultural nos pais que os possa auxiliar no acompanhamento dos filhos; etc) –, este conceito de “assistencial” não era formulável, posto que a mentalidade higienista da época não ia além do teor salvacionista, civilizatório e eugênico (GONDRA apud SAVIANI, 2007, p. 137).

O conceito de “assistencial”, implicando em real possibilidade de ascensão social daqueles julgados desfavorecidos por causa das características intrínsecas da profissão das Armas, não é formulável em um contexto de naturalização do fracasso escolar. Em tal contexto, uma proposta “assistencial” só se materializa como “assistencialista”, ou seja, articulada com o pensamento asilar de normalização da sociedade.

Já o conceito de “preparatório”, além de pragmaticamente atender à demanda institucional por melhor preparação de quadros às escolas militares, permitiu ao Exército ombrear com outras iniciativas de escolas de acesso restrito que preparavam a elite nacional da época (6).

Prevalecendo, assim, o ensino preparatório sobre o assistencial, e sendo aquele destinado às escolas militares, ocorreu a militarização das práticas educativas dentro do colégio, dentro da perspectiva de uma Força Armada que se pretendia profissionalizar (7). Na perspectiva de FOUCAULT (2002, p. 135- 136):
“A colocação em série das atividades sucessivas permite todo um investimento da duração pelo poder: possibilidade de um controle detalhado e de uma intervenção pontual (de diferenciação, de correção, de castigo, de eliminação) a cada momento do tempo; possibilidade de caracterizar, portanto de utilizar os indivíduos de acordo com o nível que têm nas séries que percorrem; possibilidade de acumular o tempo e a atividade, de encontrá-los totalizados e utilizáveis num resultado último, que é a capacidade final de um indivíduo. Recolhe-se a dispersão temporal para lucrar com isso e conserva-se o domínio de uma duração que escapa. O poder se articula diretamente sobre o tempo; realiza o controle dele e garante sua utilização”.
Atesta essas características o depoimento do aluno Nelson Werneck Sodré, que lá estudou de 1924 a 1930:
“Porque o Colégio Militar não honrava o nome apenas na forma das edificações: o seu regime era integralmente militar. A administração era constituída por oficiais da ativa – só o general-comandante era às vezes da reserva (...). Os alunos eram grupados em Companhias, comandadas por capitães. Austero o regime, severíssimo. Os professores eram militares da reserva ou civis que tinham honras militares e ministravam as aulas fardados (...). Os trabalhos eram marcados por toques de corneta e por campainhas; tudo se processava em ordem e silêncio. Enquadrados pela instrução militar, desde o primeiro dia, os alunos portavam-se como soldados (...). Os exercícios militares eram diários (...). Diariamente havia formatura geral (...). O comandante com a oficialidade recebia a continência da tropa" (SODRÉ, 1967, p. 6).
Faz-se presente desde o início, também, a característica meritocrática da distribuição de símbolos (insígnias, medalhas) que evidenciam o mérito. Estes símbolos, porque carregados no próprio uniforme, permitem a diferenciação entre os alunos por seu resultado intelectual (8). Como uma herança jesuítica (9) que se imiscui na meritocracia positivista, a hierarquização pelo rendimento escolar passou a organizar o corpo discente no Colégio Militar. São distribuídos postos e graduações (10), ao longo de todos os anos de curso, aos alunos que se destacam, de tal maneira que passam a existir cabos e sargentos-alunos nas primeiras séries e um coronel-aluno no último ano. Sobre a hierarquização meritocrática, nos diz FOUCAULT (2002, p.151):
"A divisão segundo as classificações ou os graus tem um duplo papel:marcar os desvios, hierarquizar as qualidades, as competências e as aptidões; mas também castigar e recompensar. Funcionamento penal da ordenação e caráter ordinal da sanção. A disciplina recompensa unicamente pelo jogo das promoções que permitem hierarquias e lugares; pune rebaixando e degradando. O próprio sistema de classificação vale como recompensa ou punição”.
Nasceu, assim, o Colégio Militar do Rio de Janeiro, origem da identidade do SCMB. Gestado por mais de cinquenta anos (da proposta do regente Araújo Lima à sua fundação) entre uma finalidade assistencialista e outra preparatória, tendo, hoje – como será mencionado à frente –, uma finalidade assistencial como única justificativa para sua manutenção, o CMRJ dialoga com a pedagogia patronímica da instituição militar, com a personificação da paisagem (no sentido do millieux humain, de BERQUE, 1994) e com a colaboração de todos os actantes que com ele interagem. A seguir, vamos apresentar o culto às tradições que se consolida no século XX, fortemente ancorado na obra do Marechal José Pessoa, idealizador da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) e do pensamento educacional do Exército consolidado no pós Segunda Grande Guerra.



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(1) Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 31/05/1851, apud CUNHA, 2006, p.94.

(2) Anais do Senado do Império, sessão de 10/06/1867, apud CUNHA, 2006, p. 110.

(3) Sobre o assunto, ver: FREIRE, Fábio Facchinetti. Sobre os ensinos preparatório, assistencial e assistencialista. Revista do Exército Brasileiro, vol. 143. Rio de Janeiro: Bibliex, 2005.
 
(4) “Apesar da histórica brutalidade do recrutamento, o início do conflito despertou um autêntico entusiasmo cívico, originando a formação de batalhões de voluntários, e as primeiras vitórias alcançaram grande repercussão, fazendo surgir, talvez, pela primeira vez, um sentido positivo de pátria junto à maioria do povo, que agitava a bandeira nacional nas partidas das tropas. Engrandecia-se a imagem do imperador, como líder e conciliador da nação e, ao mesmo tempo, surgiam os primeiros heróis militares como Caxias, Osório e o Almirante Barroso” (CUNHA, 2006, p.124).

(5) Relatório apresentado à Assembleia Geral Legislativa na quarta sessão da vigésima legislatura pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Guerra Thomaz José Coelho de Almeida. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889. Apud CUNHA, 2006, p.137.

(6) Como exemplos: Imperial Liceu de Artes e Ofícios / 1858; Colégio do Mosteiro de São Bento / 1858; Liceu Literário Português /1874; Escola de Humanidades do Instituto Farmacêutico / 1874 (SAVIANI, 2007, p.141).

(7) É muito importante lembrar o quão é recente a definição de “práticas militares” em relação com práticas pedagógicas. Mesmo as escolas militares voltadas à formação da oficialidade, ao longo do século XIX, não cumpriam uma rotina entendida, nos termos de hoje, como “militar”. Para isso colaborava a mistura entre formações destinadas à caserna com outras, como a de engenheiro civil. O crescente processo de profissionalização que se dá a partir da reforma de 1850 e que se desenrola no conflito entre “doutores” e “tarimbeiros” vai impondo costumes e comportamentos tipicamente castrenses dentro das escolas militares, tais como o uso dos uniformes, as formaturas, as sessões de ordem unida, etc.

(8) É interessante observar – e isso será tratado melhor mais à frente – como o desejo pela diferenciação no uso dos uniformes (“des-uniformização”) leva às tentativas de institucionalizar outros símbolos para uso cotidiano: alunos que fazem parte de grêmios, que são monitores escolares, que são atletas ou tocam na banda escolar, querem o direito de usar nas fardas indicativos dessas particularidades. E é interessante observar, também, como a instituição oscila entre formalizar as diferenciações que entende como pertinentes, permitindo a criação e utilização de broches, bordados, placas e outros adereços nos uniformes, e reprimindo, em outros momentos, a multiplicação dessas particularizações, porque elas acabam por contradizer, obviamente, o sentido de se usar uniformes.

(9) Sobre a prática do disputatio formalizado no plano geral dos jesuítas em 1599, com o nome de Ratio Studiorum, ver SAVIANI, 2007.

(10) Postos são as posições ocupadas pelos oficiais na hierarquia militar, enquanto graduações são as posições dos praças.

Capítulo 2: Historiando ... (2ª parte)

ANTECEDENTES: COMO SE PODE NASCER DE ACORDO COM AS CONSEQUÊNCIAS

Tomemos a Guerra do Paraguai (1864 – 1870) como um primeiro divisor de águas.O Exército Brasileiro (EB), que até este ponto chamaremos de Imperial, derivava do Exército Português e tinha como principais desafios vencer as revoltas de cunho regional que ameaçavam a integridade do território e impor o projeto imperial (CUNHA, 2006). Esta derivação, que tem a ver com a impossibilidade em custear uma Força Armada de envergadura nacional naquele momento, fez com que permanecessem, na nova/velha instituição, tradições tais como o cadetismo (1) e a estruturação hierárquica baseada nos privilégios de nascimento, ao invés da estruturação meritocrática.

A constituição aristocrática da cúpula desse Exército garantiu grande participação de portugueses na oficialidade, bem como dispensou,como acontecia em Portugal,a formação acadêmica desse segmento. Preparava-se, já, o cenário para o primeiro conflito entre formações de oficiais.

 A Guerra do Paraguai surpreendeu uma nação de Exército incipiente (cerca de 18.000 homens em 1864 (2)) e desvalorizado, como atesta a fala, em 1860, de Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, futuro patrono do Exército:
“À vista destes favores oferecidos aos voluntários e engajados, maravilha que a maior parte do exército não seja composta deles. É entretanto o contrário: todas essas vantagens não são suficientes para vencerem a repugnância do nosso povo ao serviço das armas. À exceção de muito poucos que, por dedicação à vida militar estão excluídos da regra geral da repugnância: à exceção desses moços que voluntariamente assentam praça com o fim de estudarem nas escolas superiores do exército” (CAXIAS apud CUNHA, 2006, p. 37).
Foge ao interesse e ao fôlego deste trabalho se aprofundar sobre a guerra em questão e a atuação do Exército na mesma; interessa-nos enfatizar o quanto ela expõe as carências de uma Força Armada não profissional e o quanto inaugura uma demanda que modificará, profundamente, a Instituição no último terço do século XIX. É certo que dela emergiu o Exército profissional que se disse republicanoe, no intuito de entender melhor o imaginário da Força, sua identidade, seus valores, tradição e símbolos, cabe recortar o tratamento dado à memória desse evento.

O Exército que voltou vitorioso da contenda passou a cobrar melhores condições para sua existência. Contra uma hierarquia “de berço” – o modelo português censitário que apoiava a Monarquia –, começou a ganhar contornos uma hierarquia do mérito intelectual. Em um esquematismo para fim didático, podemos comparar o que seria um primeiro exército – não profissional, monárquico, sem formação acadêmica, aristocrático e mais velho – com um segundo exército – buscando a profissionalização, de ideais republicanos, com formação acadêmica (3), meritocrático e mais novo.

Este conflito entre concepções de Exército, que é um conflito entre formações militares, ganhou a alcunha de “tarimbeiros” (4) contra “doutores” (CARVALHO, 2005 e CASTRO, 1995, 2002, 2012). No primeiro grupo estavam os militares com maior vivência da realidade castrense, que serviram nas tropas, que ocuparam posições na hierarquia por seus berços e relações; no segundo, uma juventude que via na carreira das Armas uma real possibilidade de ascensão social pelo mérito dos estudos acadêmicos, notadamente centrados nas disciplinas ditas “exatas”. Foi o momento de entrada e fortalecimento de certa interpretação do positivismo francês de Comte, com sua apologia das matemáticas e da república.

Neste conflito, saiu vencedor o segundo grupo; apesar disso, o Exército republicano em busca de profissionalização que emerge no último terço do século XIX irá guardar muito dos costumes, dos símbolos, das relações pautadas da tradição monárquica e da cultura portuguesa, principalmente após a reforma do ensino promovida pelo Marechal José Pessoa, da qual trataremos mais à frente.

Por que, então, chamamos a este tópico de “antecedentes: como se pode nascer de acordo com as conveniências”? Para fazermos referência, agora, a uma primeira “invenção da tradição”, que ilustra este jogo de apropriações da memória, por meio do qual a história vai sendo instituída.

Conforme é apresentado por CASTRO (2002), da Guerra do Paraguai emergiu uma biografia que, por mais de quatro décadas, foi cultuada como representante daquele novo Exército: a vida de Manuel Luís Osório (1808 – 1879), o Marques de Herval. Herói daquela guerra e, em particular, da Batalha do Tuiuti (1886), considerada a maior batalha campal travada em solo sulamericano (CASTRO, 2002), o Marechal Osório destacou-se no campo de batalha e no imaginário castrense como destemido e impetuoso. Seus feitos foram lembrados no dia de seu aniversário (24 de maio), que começou a ser identificado como data comemorativa do próprio nascimento do Exército.

Até então o Exército não cultuava, de forma sistemática, seus ídolos. A partir de 1925, conforme aviso ministerial, o nascimento do Duque de Caxias passou a ser a data comemorativa do “Dia do Soldado”. É neste ano que, também, a turma de formandos da Escola Militar de Realengo foi batizada com o nome do “Duque de Ferro”.

A tradição do patronato das turmas espelha um costume francês, absorvido no Brasil pela simpatia do Exército àquele país vitorioso na 1ª Guerra Mundial. É importante lembrar que um patron é um patrono (protetor), mas é, também, um padrão (modelo): foi inaugurada a tradição dessa escolha de representantes que, intitulando uma turma de formação, devem enfeixar aquelas características julgadas relevantes e condizentes com o ethos militar. Nesta direção, começou a prática pedagógica de eleger os vultos militares (principalmente da Guerra do Paraguai) como patronos das armas, quadros e serviços do Exército (5), idealizando características que estes vultos teriam demonstrado em suas atuações e que são julgadas imprescindíveis para o bom desempenho profissional, nos dias de hoje, dos militares das armas apadrinhadas.Assim é que – citamos como exemplo – os oficiais de Infantaria, que devem ser rústicos, resistentes (física e moralmente) – dentre outras características – têm como espelho e referência (patron, modelo) o Brigadeiro Sampaio, cearense sem formação acadêmica ferido mortalmente na Batalha de Tuiuti.

Entendemos, com CASTRO (2002), que foi o atendimento a essa lógica que levou ao afastamento da figura de Osório – como patrono “espontâneo” do Exército – do papel de representante da Força Armada. Enquanto que este vulto histórico sempre esteve ligado à intemperança, à bravura em combate, à intempestividade, à figura de Caxias foi possível associar outros valores e propósitos, tais como a lealdade e a luta pela integração nacional. Ilustra bem essa construção do estereótipo a afirmação contida na ordem do dia do Comandante da 1ª Brigada de Exército, em 1926:
“(...) quando a política vos quiser enlevar nas suas tramas enganosas procurando vos fazer crer não ser perjúrio o quebramento dos deveres da disciplina e o insurgimento contra as autoridades, não vos esqueçais de que Caxias, espelho de lealdade, não obstante ter militado na política, foi constantemente o baluarte inexpugnável da legalidade” (CASTRO, 2002, p.21). 
Da mesma forma que a escolha de Caxias como patrono do Exército, obedecendo à intenção pedagógica de reproduzir valores por meio de uma mitologia, a escolha da Batalha de Guararapes (1648), dentro da guerra de expulsão dos holandeses, vem substituir a Guerra do Paraguai como marco fundacional do Exército Brasileiro.

Como apresentado até aqui, a participação brasileira na Guerra do Paraguai é um divisor de águas na história do Exército, por servir de referência à clivagem da Força em dois grupos e dois pensamentos, dos quais emergiu o Exército republicano, meritocrático e positivista que se profissionalizou principalmente a partir do século XX. Porém, a ação pedagógica de apropriação dos eventos e das biografias se pauta, em primeiro lugar, em um conjunto axiologicamente interessante de características, em relação às quais os eventos e biografias se amoldam. Em outras palavras, a invenção das tradições (HOBSBAWM e RANGER, 2012) (6) se presta aos interesses do Estado ou mesmo de grupos sociais específicos, mas sempre para a manutenção de identidade, coesão e estabilidade social, frente às situações de rápida transformação histórica.

Assim é que a participação brasileira na Guerra do Paraguai, a partir do último quartil do século passado, vai sendo associada com uma atuação expansionista da nação, por sua vez implicada no imperialismo inglês do século XIX. Como matriz axiológica, o episódio perde valor para as demandas do século XXI.

Por outro lado, a Batalha de Guararapes, ainda que mais antiga, serve às seguintes associações:

Vínculo indissolúvel entre o Exército e a nacionalidade brasileira – ainda que só possamos tratar de “nação brasileira” a partir da independência, em Guararapes foi lançada a “semente da nacionalidade” (CASTRO, 2012, p.72).

Integração entre as três raças formadoras da nacionalidade brasileira – naquela batalha lutaram o branco, o negro e o índio brasileiros contra o invasor estrangeiro.

O enfrentamento do “inimigo estrangeiro” – não se faz apologia de um Exército expansionista, mas defensor da Pátria.

O enfrentamento de um inimigo mais poderoso – realçando o fato de que o Brasil, no período de estabelecimento desse novo discurso, começa a se ver como alvo da cobiça internacional (como em referência à Amazônia).

Assim, ainda que frágil perante os argumentos da historiografia, o episódio do fim do século XVII é alçado ao status de gênese da instituição, servindo de exemplo dessa pedagogia patronímica que busca nos remeter, sempre, a filiações de costumes e valores:
“A página na internet criada pelo Exército em 1998, para as comemorações dos 350 anos da batalha apresenta Guararapes como‘Berço da Nacionalidade do Exército Brasileiro’ e seus heróis como representantes das ‘três raças formadoras da essência do povo brasileiro’. E também: ‘prodígio de criatividade, ousadia e bravura, a 1ª Batalha dos Guararapes é mais do que um memorável feito militar de nossos antepassados. Neste duelo, em que o Davi caboclo abateu o Golias estrangeiro, assentam-se as raízes da Nacionalidade e do Exército brasileiros, que caminham juntos há 350 anos” (CASTRO, 2002, p.72).
Neste tópico, apresentamos um primeiro esboço da gênese do Exército republicano e profissional que emoldurará os colégios militares a seguir. Ao mesmo tempo começamos a apresentar, também, certo uso das tradições que, partindo do referencial proposto por HOBSBAWM e RANGER (2012) se torna mais dinâmico na acepção de CASTRO (2002) e nas possibilidades apontadas por LATOUR (2012): uma invenção de tradições que, inicialmente pretendendo servir à manutenção da identidade, da coesão e da estabilidade social, entra em diálogo com todos os atores envolvidos, tornando-se um processo de invenção geral da cultura, cuja rede nos é possível rastrear. O movimento inicial de fixação de costumes, interesses e valores proposto se relaciona com a intenção “espontânea” de estabilizar outro conjunto; entram em diálogo histórias de vida – reais e idealizadas –, toda uma semiologia das estátuas equestres (7) e o começo de uma pedagogia patronímica.


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(1)  Cadete é o título nobiliário criado por Dom José I em 1757, e que foi reabilitado pelo Marechal José Pessoa na reestruturação da formação militar da qual falaremos mais a frente, permanecendo em uso até hoje. Recebe este título o aluno do primeiro ano da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), em formatura em que lhe é entregue o espadim – réplica do sabre de Caxias – como confirmação de sua situação de militar.

(2) A segurança interna era garantida pela Guarda Nacional que, no período, chegou a contar com mais de 200.000 homens os quais tinham, também como motivação, escapar do recrutamento para o Exército e a Armada. É interessante observar que, pelo menos inicialmente, era democrático o critério para a escolha da oficialidade da Guarda Nacional, o que se dava através de assembleias. Pouco a pouco, entretanto, o governo foi centralizando as nomeações até que, já próximo da Guerra do Paraguai, não ocorria mais nenhuma instância eletiva (CUNHA, 2006).

(3) A formação dos oficiais passou por vários endereços. Dentre os principais: a Academia Real Militar (1810 – 1822) depois Imperial Academia Militar (1823 – 1831), Academia Militar da Corte (1832 – 1838), Escola Militar (1839 – 1855), no Largo do São Francisco – Rio/RJ; e Escola Militar de Aplicação (1855 – 1858), na Fortaleza de São João – Rio/RJ; Curso de Infantaria e Cavalaria (1851) – Porto Alegre/RS; Escola Militar da Praia Vermelha (1857 – 1904) – Rio/RJ; Escola Militar do Realengo (1904 – 1944), no Rio/RJ; Academia Militar das Agulhas Negras (1944 – ... ) em Resende/RJ (MOTTA, 1998).

(4) “Tarimba” era o estrado de madeira sobre o qual dormiam os soldados.

(5) Infantaria: Brigadeiro Antônio de Sampaio; Cavalaria: Marechal-de-Exército Manuel Luís Osório; Artilharia: Marechal-de-Exército Emilio Luís Mallet; Engenharia: João Carlos de Vilagran Cabrita; Intendência: Carlos Machado Bittencourt; Material Bélico: Tenente-General Carlos Antônio Napion; e Comunicações: Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon. Estas especializações (armas, quadros e serviços) são obtidas, hoje, na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), principal origem de formação dos oficiais do Exército. Para as outras especializações obtidas em outras escolas de formação, também há a designação de patronos.

(6) Entendemos, com CASTRO (2002, p.11), que não existe uma oposição entre tradições “inventadas” e “genuínas”, mas uma condição de permanente invenção da cultura humana, uma tradição de invenção. Em contrapartida, existe o esforço cultural de “cristalizar” as tradições para torná-las reconhecíveis, no que podemos lembrar as pontualizações (LATOUR, 2012) por meio das quais as redes se naturalizam obscurecendo sua trama e o correlato esforço de rastreamento como a reconstituição, entre elementos sociais e não-sociais, das redes de associações.

(7) CASTRO (2002) faz uma curiosa apresentação da disputa pela memória, seguindo a criação e exposição das estátuas equestres. Os dois vultos em questão – Caxias e Osório – ganham estátuas antes dos demais heróis do século XIX (como Deodoro da Fonseca, Benjamim Constant e Floriano Peixoto). As estátuas materializam conjuntos axiológicos diferentes: na de Caxias, “o cavalo está estático, sem movimento. Caxias segura com uma mão as rédeas e com a outra um binóculo. Na frente da estátua estão representados o brasão ducal, a coroa e as armas” (p.15). Na de Osório, “seu cavalo está em movimento e Osório, em uniforme de campanha, segura com uma das mãos as rédeas enquanto a outra empunha a espada no ar. Na base da estátua estão representados seus troféus militares, o poncho que costumava usar e sua espada de campanha” (p.14). O autor observa, também, que Caxias passa a ser tratado sempre com o título nobiliário (Duque de...), enquanto Osório é incorporado pela história sem o título a que fez jus (Marquês de Herval).

Capítulo 2: Historiando os Colégios Militares

A APROXIMAÇÃO HISTÓRICA

O CMRJ existe a cento e vinte quatro anos. Qualquer abordagem que pretenda compreendê-lo, hoje, não pode prescindir de considerar sua idade – e a da instituição a qual se filia, o Exército –, como um elemento de análise.

Porque, para as instituições totais (GOFFMAN, 2001), e no caso particular da formação militar (FOUCAULT, 2002), a instituição tem a pretensão de incutir certo conjunto de valores em seus membros, e dispõe de recursos para monitorar a adesão a eles. Sendo um conjunto axiológico tomado como perene, ele é desistorizado, os valores aos quais remete são tidos como sempre postos. É importante, portanto, em qualquer investigação, situar novamente a instituição em seu processo histórico, enxergar suas mudanças e evoluções, bem como a mecânica de criação e escolha das tradições para as quais a norma veio a olhar, no presente. É neste sentido que colaborará com a pesquisa o levantamento e entrecruzamento de três vertentes: as histórias da educação brasileira, da formação militar e do CMRJ.

Não estando no centro da investigação, este esforço periférico se justifica porque os Colégios Militares ocuparam posições móveis em relação a educação nacional, estando, no começo, mais voltados à formação de quadros para a Força Armada e só muito recentemente integrados às finalidades da educação básica; porque a própria formação militar sofreu grandes transformações nos últimos cento e cinquenta anos (sendo a profissionalização da carreira, como a entendemos hoje, fruto com menos de cem anos); e porque sua história específica contém uma diversidade que o retrato contemporâneo, fixado (no sentido proposto pela ANT) nas instalações, normas, uniformes, gestos, costumes e tradições, não facilita a percepção.

Este esforço deverá dar conta das contradições do percurso, ou seja, da maneira como a história vai sendo composta entre as afirmações institucionais e as confirmações (ou não) dos envolvidos, que resistem reescrevendo, cotidianamente, a memória do Colégio.

São essas pequenas influências, narrativas que parecem pontuais, que enriquecem a historiografia na medida em que evidenciam a fragilidade dos fatos, se tomados como fatos e não como um fluxo inconstante de acordos (fatos podemser, em certa medida, actantes e dispositivos). De certa forma, é não concordando com a história como lógica dos fatos, como causalidade racional, que podemos reforçar a abordagem seguida e o próprio conceito de contemporaneidade (1).

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(1) Pensamos, é claro, na genealogia que Foucault (2007) propõe pensando em Nietzsche. 

Interlúdio

O ALUNO DO CMRJ E AS TRADIÇÕES COMO DISPOSITIVOS

Começamos este trabalho com uma descrição declaradamente tendenciosa, porque, na apresentação do aluno do Colégio Militar (primeiro ocultando esta situação-chave, depois a afirmando na mesma descrição) queríamos provocar o estranhamento, abrir a caixa-preta que é esta figura anônima. Porque a primeira condição para o obscurecimento de nosso personagem é sua subsunção nisso mesmo: ser um personagem, ou uma tradução que oculta, na pontualização, uma rede heterogênea que é – como não podia deixar de ser – totalmente particular.

O aluno do CMRJ pode ser normalizado como outros sujeitos assemelhados. Pode ser um aluno da rede pública de ensino; ou um adolescente carioca; ou um civil filho de militar. Em todas estas situações, ele não deixa de ser um vivente em relação com vários dispositivos que o sujeitam de diversas formas. Interessa-nos, para o fim da tese em desenvolvimento, este actante que participa da rede “Colégio Militar”, a qual só pode receber esta denominação – que sinaliza sua estabilização – porque as forças todas em jogo se encontram equilibradas dentro dela, pontualizando-a.

Reconhecendo, desde sempre, que a denominação “aluno” é uma facilitação didática que viabiliza a investigação, já que, rigorosamente falando, só existem “alunos” irredutíveis ao coletivo, porque sujeitados, um a um, em interação singular com todos os outros actantes; reconhecendo, enfim, esta necessidade da linguagem, a tese em andamento atentará para os uniformes e o gestual como instâncias privilegiadas dentro da rede.

A farda (como trataremos os uniformes escolares, aqui) não é, simplesmente, uma vestimenta. No caso do Exército, seu uso é totalmente regulado em instrumentos legais (EXÉRCITO BRASILEIRO, 1998), porque se entende que elas representam a instituição:
Art. 2º O uso correto dos uniformes é fator primordial na boa apresentação individual e coletiva do pessoal do Exército,contribuindo para o fortalecimento da disciplina e do  bom conceito da Instituição perante a opinião pública (Exército Brasileiro, 1998).
Não que já não seja de conhecimento da sociologia o fato das roupas traduzirem identidades ou pertencimentos de classe; porém, no caso das Forças Armadas, pretende-se uma regulação que é única e uma representação que é exata, inclusive porque neste processo está implicada a saúde da corporação como instituição (...fortalecimento da disciplina e do bom conceito...)(1).

E como as Forças Armadas são redes de hierarquização explícita e fortemente normatizada, nas quais existe um compromisso formal de todos com todos (espírito de corpo), o cuidado com o fardamento extrapola a responsabilidade individual, abrangendo, em panóptico, a responsabilidade coletiva: Constitui obrigação de todo militar zelar por seus uniformes, pela correta apresentação de seus subordinados e dos que lhe são de menor hierarquia (EXÉRCITO BRASILEIRO, 1998, Art.3º).

Conforme mencionado, o aluno do Colégio Militar não é, ele próprio, militar, mas está inserido na instituição e implicado, para a manutenção de sua condição de aluno, na obediência a diversos regulamentos, dentre os quais o R-124. Assim é que a aparência e o uso de seus uniformes diários é rigidamente regulada, não permitindo flexibilizações, personalizações, ou quaisquer mudanças.

O conjunto de suas cores e feitios; os diversos adereços; a maneira como interagem com o corpo remetem a uma história, a uma tradição. É desta maneira – dentre outras – que os militares podem reclamar seu pertencimento ao grupo: pela comunhão de tradições que, em contrapartida, apontam para um destino comum.

Entretanto, uma rápida observação sobre o dia-a-dia escolar permite ver grande polifonia na vestimenta, sugerindo apropriações particulares – portanto transgressoras – do que deveria servir, a princípio, como uniformizador do indivíduo.

As boinas garança, por exemplo: devem ser colocadas na cabeça em uma posição muito específica, apresentada com fotos no R-124, posição esta que é a mesma para todas as boinas adotadas pelo Exército e que tem a cor sanguínea não gratuitamente, mas em referência ao sangue derramado pelos combatentes brasileiros na Guerra do Paraguai, episódio da história do Brasil particularmente relevante para os Colégios Militares. Estas boinas, vemos pequenas para o tamanho das cabeças (e para o tamanho dos cabelos, que deveriam, seguindo o cânone militar, ser bem curtos), empoleiradas em equilíbrio impossível como “pizzas brotinho” mais atrás do crânio, deixando franjas igualmente iconoclastas à mostra.

As camisas: pelo regulamento são beges e enfiadas para dentro das calças, de tal forma que permaneçam esticadas no corpo, sem dobras sobrando para fora. Estas camisas, as vemos descuidadamente cobrindo os cintos (que deveriam estar sempre brilhando, a custa de polimento) e, muito frequentemente no caso das alunas, deixadas para fora da saia-calça em sua parte de trás, cobrindo parcialmente as nádegas.

Olhemos, agora, para o gestual militar. Ele serve à distinção do grupo e, neste sentido, mais ao reconhecimento dos militares frente ao público externo (frente aos que não são militares) do que à identificação interna, ou seja, frente aos que são militares. A este público, o gestual serve à fixação da hierarquia, na medida em que reafirma as relações de subordinação (2).

A continência, por exemplo, é definida em regulamento (EXÉRCITO BRASILEIRO, 1997), o qual, como acontece com o fardamento, serve à precisão de sua finalidade, oportunidade e maneira de execução. São muito esclarecedores os artigos 2º e 3º:
Art. 2º Todo militar, em decorrência de sua condição, obrigações, deveres, direitos e prerrogativas, estabelecidos em toda a legislação militar, deve tratar sempre:
I - com respeito e consideração os seus superiores hierárquicos, como tributo à autoridade de que se acham investidos por lei;
II - com afeição e camaradagem os seus pares;
III- com bondade, dignidade e urbanidade os seus subordinados.
§ 1º Todas as formas de saudação militar, os sinais de respeito e a correção de atitudes caracterizam, em todas as circunstâncias de tempo e lugar, o espírito de disciplina e de apreço existentes entre os integrantes das Forças Armadas.
§ 2º As demonstrações de respeito, cordialidade e consideração, devidas entre os membros das Forças Armadas, também o são aos integrantes das Policias Militares, dos Corpos de Bombeiros Militares e aos Militares das Nações Estrangeiras.
Art. 3º O militar manifesta respeito e apreço aos seus superiores, pares e subordinados:
I - pela continência;
II - dirigindo-se a eles ou atendendo-os, de modo disciplinado;
III - observando a precedência hierárquica;
IV - por outras demonstrações de deferência.
§ 1º Os sinais regulamentares de respeito e de apreço entre os militares constituem reflexos adquiridos mediante cuidadosa instrução e continuada exigência.
§ 2º A espontaneidade e a correção dos sinais de respeito são índices seguros do grau de disciplina das corporações militares e da educação moral e profissional dos seus componentes.
§ 3º Os sinais de respeito e apreço são obrigatórios em todas as situações, inclusive nos exercícios no terreno e em campanha.
Podemos entender, então, que a continência, incluída como um sinal de respeito e apreço (item I do Art. 3º), deve ser usada sempre (caput do Art. 2º e § 3º do item IV do Art. 3º); caracterizando o espírito de disciplina e de apreço (§ 1º do Art. 2º), e que sua introjeção no militar é fruto de ensino, prática e fiscalização (§ 1º do item IV do Art. 3º).

À semelhança do que acontece em sua relação com o fardamento, o aluno dos Colégios Militar mimetiza o profissional da caserna quanto à obediência ao gestual militar, mesmo não pertencendo aos quadros da Força Armada (3), e, como também pode ser observado com os uniformes, subverte a normatização do uso desse gestual, seja omitindo a continência em situações nas quais a mesma é obrigatória, seja personalizando-a, seja incluindo, como um gestual particular de uso horizontalizado (entre eles, alunos, “seus pares”) outros sinais de reconhecimento.

 O que a pesquisa etnográfica aqui apresentada se propõe, fazendo este recorte dos uniformes e do gestual no cômputo maior de características dos militares presentes no cotidiano escolar dos Colégios Militares (4), é, tratando como profanações (AGAMBEN, 2007 e 2009) o uso tomado à norma, à história e à tradição, compreender o aluno contemporâneo do CMRJ como actante nesta rede de elementos heterogêneos que se chama Colégio Militar.

Se o uso específico desses dispositivos não atende mais à determinação de um sujeito, que outro sujeito está sendo constituído nesse processo? Se existe esse novo assujeitamento, ele contém a positividade de reabilitar uma “política”, ou não?

No ponto em que agora chegamos do desdobramento desta investigação, se faz necessário recuperar um pouco da história dos Colégios Militares, buscando muito menos o relato canônico dos fatos como foram cooptados pela instituição, e menos, também, certas interpretações totalizantes da história dos Colégios Militares como inseridos na instituição que os acolhe; interessa-nos recuperar a história para que ela nos conte dos interstícios com a educação pública civil, nos conte da invenção das tradições (RANGER; HOBSBAWM, 2012) que já nasceram antiquíssimas, e nos conte, enfim – com toda a limitação de tempo e espaço – desse jogo negociado ponto a ponto entre Exército e alunos, instituído e instituinte, sujeitos e dispositivos.

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(1) Ou ainda: O zelo e o capricho do militar com as peças do uniforme são uma demonstração de respeito e amor à farda que veste e, mais do que isto, externam o seu ânimo profissional e o seu entusiasmo com a carreira das armas, sendo importante observar a limpeza, a manutenção do brilho nos metais, o polimento dos calçados e a apresentação dos vincos verticais nas peças de fardamento, como é sugerido nas figuras deste Regulamento (EXÉRCITO BRASILEIRO, 1998, Parágrafo único do Art. 3º).

(2) Sobre as particularidades do gestual militar, é indispensável ler sobre as técnicas do corpo (MAUSS, 2003) em conjunto às considerações de CASTRO (1990) e LEIRNER (1997).

(3) Referimo-nos a título de exemplo, neste trabalho, a continência, porém o universo do gestual militar a ser tratado na pesquisa em questão incluirá, também, a ordem unida, no que esta é solicitada aos alunos, junto com os uniformes e os sinais de respeito, segundo sua regulamentação específica (EXÉRCITO BRASILEIRO, 2000).

(4) A pesquisa se propõe, efetivamente, a um recorte em um universo bem maior de possibilidades: deixaremos de fora, por exemplo, o campo das cerimônias, igualmente representativas e reguladas, bem como o campo dos hinos e canções.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Capítulo 1: Fundamentação teórica (2ª parte)

PRELIMINARES PARA UMA PESQUISA: O CORTE E O FUNDO

O CMRJ (1889) ombreia com outras escolas tradicionais cariocas, como o Colégio Pedro II (1837) e o Instituto de Educação (1930) (1). Ainda que as histórias desses três estabelecimentos de ensino se entrecruzem, nos interessa investigar, de um rol maior de escolas centenárias, as particularidades deste colégio de educação básica que se desenvolveu em simbiose com a instituição das Armas.

Havendo o interesse pela pesquisa etnográfica, sentimos necessidade de definir dois componentes, sendo um deles o corte que atravessará a investigação, o marco conceitual pelo qual o trabalho poderá ser distinguido, mais a frente. E há que se ter cuidado ao se tratar de um corte, para que ele não se confunda com alguma afirmação a priori levada à investigação e que contamina, de início, a possibilidade de rastreamento. Reconhecemos, de pronto, que não é intenção da etnografia conhecer enquanto confirmação da teoria, no que replicaria a abordagem tradicional. Mas isso não nos dispensa a definição de um viés inicial, uma linha-guia para a aproximação. É este “tom” que chamaremos de corte, não como alguma coisa que delimita ou emoldura, definindo um fora e um dentro, mas como a ação de percorrer, de atravessar, de forma específica, por dentro do real: como a quilha do navio corta as ondas, como a cunha do arado sulca a terra.

Nosso corte se valerá do conceito de profanação, como formulado por AGAMBEN (2007, 2009). Para entendê-lo, partiremos de uma breve genealogia do conceito de dispositivo, que é reformulado por Agamben partindo da conceituação proposta por Foucault.

REVEL (2005) localiza uma primeira referência incipiente do que viria ser o dispositivo, no pequeno prefácio de Foucault para a edição americana de “O Anti-Édipo” de Deleuze e Guattari (1972). Nele, afirma que
“A melhor maneira, creio eu, de ler o Anti-Édipo é abordando-o como uma arte,no sentido em que se fala da ‘arte erótica’, por exemplo. Apoiando-se sobre noções aparentemente abstratas de multiplicidades, de fluxos, de dispositivos e de alternativas, a análise da relação do desejo com a realidade e com a ‘máquina’ capitalista traz respostas a questões concretas”.
No mesmo prefácio, centrado no combate a uma “vida fascista”, Foucault irá esboçar objetivos de resistência – que, hoje, poderíamos relacionar com a oposição aos dispositivos – como o transcrito a seguir:
“O que é preciso é ‘desindividualizar’ pela multiplicação e pelo deslocamento, pelo agenciamento de combinações diferentes. O grupo não deve ser o elo orgânico que une indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de ‘desindividualização’”.
Em “Microfísica do poder”, este autor define dispositivo como:
(...) um conjunto absolutamente heterogêneo que implica discursos, instituições, estruturas arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas, em resumo: tanto o dito como o não dito, eis o dispositivo. O dispositivo é a rede que se estabelece entre esses elementos ...” (FOUCAULT, 2007, p.138).
E a natureza da relação entre os elementos heterogêneos como:
“(...) programa de uma instituição, ou, ao contrário, como elemento que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda; pode ainda funcionar como reinterpretação desta prática, dando-lhe acesso a um novo campo de racionalidade. Em suma, entre esses elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudança de posição, modificações de funções, que também podem ser muito diferentes” (FOUCAULT, 2007, p. 138).
E ainda:
“(...) entendo dispositivo como um tipo de formação que, em um determinado tempo histórico, teve como função principal responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma estratégia dominante. Este foi o caso, por exemplo, da absorção de uma massa de população flutuante que uma economia de tipo essencialmente mercantilista achava incômoda: existe aí um imperativo estratégico funcionando como matriz de um dispositivo, que pouco a pouco tornou-se o dispositivo de contra-dominação da loucura, da doença mental, da neurose” (FOUCAULT, 2007. p. 138-139).
O dispositivo, para Foucault – como conjunto absolutamente heterogêneo –, é um passo adiante da episteme, a qual é um dispositivo essencialmente discursivo; representa enunciados de vários tipos, como os dos filósofos, dos cientistas, mas sempre discursos – o dito. Nesse passo adiante, o autor caminha para além da linguagem – o não dito.

Qualquer dispositivo, então, atenderá a uma natureza estratégica, a uma manipulação de relações de forças, ou seja, promoverá uma intervenção, um direcionamento, quer bloqueando, estabilizando, ou utilizando as forças. E, neste intuito, é irrelevante observar se a atuação se dá pelo campo discursivo ou não:
“Entre o programa arquitetural da Escola Militar feito por Gabriel e a própria construção da Escola Militar, o que é discursivo, o que é institucional? Isso só me interessará se o edifício não estiver conforme o programa. Mas não creio que seja muito importante fazer esta distinção, a partir do momento em que o meu problema não é linguístico” (FOUCAULT, 2007, p. 141).
Pausando, por hora, este entendimento, cabe lembrar o que Foucault chama de sobredeterminação funcional e de preenchimento estratégico. Sendo os dispositivos estratégias que manipulam relações de forças, elas ocasionam, como “efeitos-colaterais”, outras modificações não previstas, outras configurações que rearticulam os elementos heterogêneos; a isto o autor chama de sobredeterminação funcional. Por outro lado, este efeito-colateral precisa ser reaproveitado dentro da sociedade, e esta ocupação do que sobrou do dispositivo é chamada de preenchimento estratégico.

O exemplo que nos é dado é o que acontece com o aprisionamento. Se ele foi o dispositivo destinado a fazer crer que as medidas de detenção, em determinado momento, eram o instrumento mais eficaz e racional de combate à criminalidade, produziu, como efeito-colateral (sobredeterminação funcional), a constituição de um meio delinquente filtrado, isolado, concentrado e profissionalizado pela prisão. E este efeito involuntário e negativo é reabsorvido, mais ou menos por volta de 1830, com a organização da prostituição (preenchimento estratégico).

Estes dois conceitos serão importantes, mais a frente, para pensarmos as resistências e possibilidades de oposição aos dispositivos. Como observa VEYNE (2011, p.170): “o dispositivo é menos um limite imposto à iniciativa dos sujeitos do que o obstáculo contra o qual ela se manifesta” (2).

Vamos nos afastar um pouco de Foucault e nos aproximar de Agamben. Traçando a genealogia do conceito, este autor retorna a Hegel por meio de Jean Hyppolite (apud AGAMBEN, 2009, p.31) para concluir que – inicialmente chamado de positividade – o dispositivo foucaultiano é, também, este elemento histórico que se impõe sobre os homens, como conjunto de instituições, de processos de subjetivação e de regras em que se concretizam as relações de poder (3).

Chegamos a uma nova formulação, tributária dessa linhagem que parte de Hegel (positividade) para Foucault:
“[dispositivo é] o conjunto de práticas e mecanismos (ao mesmo tempo linguísticos e não-linguísticos, jurídicos, técnicos e militares)que têm o objetivo de fazer frente a uma urgência e de obter um efeito mais ou menos imediato” (AGAMBEN, 2009, p.35).
Entretanto, esta não é a única trilha de formulação do conceito; o autor vai buscar outra, na teologia, com o termo grego oikonomia.

Para instituir, no segundo século, o dogma da santíssima trindade (o Pai, o Filho e o Espírito Santo), a igreja cristã teve de solucionar o conflito com aqueles fiéis temerosos do paganismo, que viam na trindade uma perigosa remessa à multiplicidade de deuses. Como o Deus único poderia ser três? A solução dada lançou mão do termo oikonomia, como “gestão da casa”. Assim Deus, que é único, se utiliza do Filho e do Espírito Santo para administrar o mundo. Desta forma, o termo se especializa como uma práxis, como um fazer terreno de Deus sobre a terra.

Em latim, a expressão equivalente é dispositio. Este passa a ser, em seu caminho de laicização,
(...) aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura atividade de governo sem nenhum fundamento no ser. Por isso os dispositivos devem sempre implicar um processo de subjetivação, isto é, devem produzir o seu sujeito (AGAMBEN, 2009, p. 38).
O termo latino dispositio (a oikonomia dos gregos) recolhido à teologia mostra, assim, sua integração com a corrente que estamos seguindo, a qual aflui com Foucault: o dispositivo como conjunto de práxis, de saberes, de medidas, de instituições cujo objetivo é gerir, governar, controlar e orientar, num sentido que se supõe útil, os gestos e os pensamentos dos homens (AGAMBEN, 2009, p. 39).

É neste ponto de desenvolvimento de seu argumento que o autor abandona os caminhos já traçados que vinha perseguindo e se aventura por uma trilha inédita. Para além da positividade hegel-foucaultiana e da oikonomia/dispositio cristã, propõe uma divisão radical de tudo em dois grupos: de um lado, os viventes; do outro, os dispositivos. De um lado, a ontologia das criaturas; do outro, a gestão das substâncias.

Se, para Foucault, os dispositivos foram pensados restritos ao campo já amplo das prisões, das escolas, dos manicômios, das confissões, Agamben nos propõe estender o alcance para qualquer coisa que tenha a capacidade, de algum modo, de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes (4).

Podemos pensar, assim, numa nova trindade: de um lado, os viventes (as substâncias); do outro, os dispositivos; e entre eles, os sujeitos, como resultantes, sempre, das relações estabelecidas entre viventes e dispositivos. Pensar os sujeitos em distinção às suas substâncias não é uma heresia. Temos de entender que diversos sujeitos transitam na mesma substância, alternando processos de subjetivação: o sujeito que usa o celular, por exemplo, é um vivente em relação a um dispositivo (o celular) que lhe impõe um gestual, uma delimitação, certos procedimentos. O mesmo vivente em sua casa, despido de suas obrigações e desarmado de seu celular, ao sentar-se frente à televisão incorpora outro sujeito, porque em relação com outro dispositivo (5).

Agamben constata a complexidade peculiar ao nosso tempo, em que tudo são dispositivos. É que, no entendimento de Foucault, os processos de subjetivação promovidos pelos dispositivos atendiam claramente ao governo dos homens. No caso da confissão, por exemplo, o sujeito se definia pela negação do pecado, emergia livre no ato confessional porque se opunha a alguma coisa deixada fora de si pela ação do dispositivo. Da mesma forma, a escola exercia seu poder de socialização estabelecendo uma fronteira entre o escolarizado e o não-escolarizado, sendo sujeito o primeiro, em oposição ao segundo. Ainda como exemplo, o dispositivo prisional conseguia definir um sujeito porque o contrapunha ao não-sujeito do delinquente.

Já na acepção mais ampla defendida por Agamben, não ocorre, realmente, uma subjetivação pela intervenção do dispositivo sobre o vivente, mas algo que parece, a este autor, como uma dessubjetivação. O “corpo dócil” que Foucault entendia como sujeito na sociedade disciplinar, que fora sujeitado pelo dispositivo, mas encontrava alguma afirmação em seu assujeitamento, não encontra nada semelhante em sua constituição pelos dispositivos contemporâneos (6).

O cenário distópico que se apresenta é o do eclipse da política – entendida como arena de sujeitos e identidades reais (o movimento operário, a burguesia, etc.) – e de predomínio de certa oikonomia negativa, como gestão do poder em automático, por sua pura e simples reprodução:
Direita e esquerda, que se alternam hoje na gestão do poder, têm por isso bem pouco o que fazer com o contexto político no qual os termos provêm e nomeiam simplesmente os dois polos – aquele que aposta sem escrúpulos na dessubjetivação e aquele que gostaria, ao contrário, de recobri-la com a máscara hipócrita do bom cidadão democrático – da mesma máquina governamental (AGAMBEN, 2009, p. 49).
De posse dessa conceituação mais ampla, avançaremos para o conceito de profanação.

Lançando mão, novamente, da religião cristã (e do direito romano, como atividade intimamente conexa), Agamben recupera o movimento de consagração ou sacralização, como sendo aquele que subtrai o uso de certas coisas pelos homens, restringindo-as a Deus (ou aos deuses), e o correlato movimento contrário de profanação, como sendo o de devolução ao mundo dos homens, de liberação do uso de certas coisas antes consagradas ou sacralizadas. Ainda que em paradoxo com seu significado mais comum (7), a religião (religare) sempre impõe uma separação de algo em favor do sagrado, sempre delimita um campo que não é mais dos homens, porque restrito a Deus (religere).

Como instrumento da profanação, o autor examina o jogo. Se o que dá potência ao sagrado é a conjunção entre um mito (como narrativa original) e um rito (que reproduz a narrativa, atualizando-a e pondo-a em cena), o jogo é o que quebra essa unidade, seja anulando o mito (como ludus) e mantendo o rito, seja, ao contrário, anulando o rito (como jocus) e mantendo o mito. Em ambos os casos, o que se processa é a perda de potência que devolve a atividade ao seu uso mundano.

Agamben também observa a forte presença do movimento contrário no mundo de hoje: a proliferação de jogos que não querem dessacralizar nada, que não rompem com mitos e ritos, mas são saudosismos de liturgias esquecidas, de graças obnubiladas. Em um mundo desencantado, a demanda pelo eterno se faz presente também pelo jogo. É frente esta dicotomia (jogo que profana, jogo que consagra) que o autor recupera a distinção entre secularização e profanação. No primeiro caso, traz-se uma estrutura que era sacra para o domínio terreno, sem desmontar sua relação de forças. É o caso da monarquia que, mesmo quando perde seu teor divino, se mantém como relação de poder entre os homens. No segundo caso, ocorre a neutralização da estrutura, que é o que devolve a atividade ao uso laico.

Ambos os movimentos – de sacralização e de profanação – são muito íntimos e guardam, entre si, grande ambiguidade: o que foi profanado não perde totalmente sua composição divina, e o que foi consagrado não deixa de ser, em alguma medida, ainda humano (8).

Já temos elementos suficientes para fazer a aproximação que nos interessa. Ao propormos a profanação como parte do corte – segundo a metáfora da lâmina que percorre um conteúdo, dando a forma –, pretendemos olhar para este aluno contemporâneo do CMRJ que, em sua vivência como estudante de uma tradicional escola mantida pelo Exército, ressignifica os dispositivos que o deveriam sujeitar como aluno. E nos interessa, também, examinar esta transformação pela qual os dispositivos foram sendo profanados, inclusive de dentro da própria instituição responsável por sua preservação.

Porque a normatização precisa dos usos ainda existe – de vestes, de gestos, de falas –, no que podemos pensar naquela remoção do uso comum rumo a um contexto privilegiado (sacralização ou consagração, ainda que laica), mas, o tempo todo, seu uso efetivo – o modo como os alunos se vestem, se portam ou falam – deixa perceber releituras profanas, esvaziamentos que devolvem a prática ao prosaico (“contradispositivos”).

E interessa-nos investigar, também, como mesmo a instituição – que deveria guardar pedagogicamente os usos – não exerce essa autoridade do padre e do pastor, do religioso que é o guardião da liturgia: todos participam das releituras, das ressignificações, do jogo que mundaniza o que fora consagrado.

Podemos pensar nos uniformes, nos gestos, na linguagem, todos selecionados pela Força Armada para criar um sujeito específico a partir daquele vivente original. Porém hoje, após uma rápida observação do cotidiano escolar, percebemos usos distintos das boinas (personalizadas, “customizadas” – ainda que com certa discrição), das camisas dos uniformes, dos culotes das alunas da arma de Cavalaria; percebemos usos distintos dos gestos restritos aos militares – que os alunos não são –, como é o caso da continência, da postura corporal na Ordem Unida; percebemos usos distintos da linguagem castrense, de seu vocabulário, de suas músicas (hinos e canções).

O que emerge desse novo processo de subjetivação? O sujeito ausente que Agamben lamenta em um mundo de dispositivos que separam sem consagrar? (9) Ou uma possibilidade inédita e contemporânea de reapropriação?

Se definimos, até aqui, um componente necessário a investigação, o seu marco conceitual que metaforizamos como corte, resta definir o outro componente, que trataremos como fundo.

Fundo no sentido mesmo do procedimento etnográfico, da maneira como a investigação ocupará o tempo e o espaço. Pano de fundo: uma qualidade da etnografia, sua distinção metodológica. Com este entendimento, escolhemos a abordagem da teoria do ator-rede segundo a antropologia simétrica, conforme formulada por LATOUR (1994, 2008).

Em seu livro “Nunca fomos modernos”, LATOUR (1994) começa definindo como híbridas todas as coisas, refutando, assim, a divisão entre “homem” (cultura) e “natureza” que instituiu a Modernidade. Segundo ele, a separação cartesiana proporcionou uma falsa objetividade, por meio da qual o homem pensou chegar às “coisas em si”. Tanto na naturalização, quanto na socialização ou na desconstrução, são estabelecidas críticas incompletas e parciais da realidade, e isso porque esta não é redutível aos fatos, ao poder ou ao discurso (10). A realidade atravessa todas as dimensões e deve ser tratada se reconhecendo, a priori, seu hibridismo.

A modernidade pretendeu uma disjunção que nunca deixou de ser apenas aparente, ainda que funcional por certo período. LATOUR (1994) nos fala de tradução, como a constante criação desses híbridos entre os campos supostamente isolados; e de purificação, como a separação, em duas zonas ontológicas distintas, do mundo dos humanos e dos não-humanos. É a partir, principalmente, do trabalho de antropólogos como VIVEIROS de CASTRO (2011), que podemos visualizar sociedades não dicotômicas quanto à relação homem-cultura, sociedades que integram os processos de tradução e de purificação em um continuum. Ainda em LATOUR (1994):
Este é todo o paradoxo moderno: se levamos em consideração oshíbridos, estamos diante de mistos de natureza e cultura; se consideramos o trabalho de purificação, estamos diante de uma separação total entre natureza e cultura. É a relação entre os dois processos que eu gostaria de compreender” (p.35).
O argumento de Latour é o de reconhecimento do caráter artificial da separação que funda a modernidade, ao ponto de afirmar que nunca conseguimos assumi-lo integralmente. É esta não assunção que possibilita sua afirmação (“nunca fomos modernos”) e conseqüente proposta de um plano de trabalho: a antropologia simétrica (11).

A antropologia simétrica propõe reestabelecer a equidistância entre o braço “coisas” (ciência, técnica) e o braço “homens”. Clarificando: a instituição da modernidade, ao mesmo tempo em que afirma a transcendência da natureza, colocando-a distinta da imanência da sociedade (fabricada pelo homem) possibilita o seu contrário, que é a natureza ser fabricada pelo homem (tornada imanente) e a sociedade ser posta fora de nosso alcance (tornada transcendente via o envolvimento cada vez mais frequente de não-humanos). Este paradoxo é articulado por uma terceira solução, que junta as duas pontas contraditórias: “ainda que passível de mobilização e construção, a natureza continuará não tendo qualquer relação com a sociedade, a qual, ainda que transcendente e mantida pelas coisas, não terá mais uma relação com a natureza” (LATOUR, 1994, p. 137). Se este acerto, que é o da modernidade, expulsa os quase-objetos e torna as redes de tradução clandestinas, é necessário um pensamento articulador, que é expressado em novas garantias. A primeira, de não-separabilidade entre quase-objetos e quase-sujeitos:
Qualquer conceito, instituição ou prática que atrapalhar ao desdobramento contínuo dos coletivos e sua experimentação de híbridos será tachado como perigoso, nefasto e imoral. O trabalho de mediação torna-se o próprio centro do duplo poder natural e social. As redes saem da clandestinidade. O império do centro está representado (LATOUR, 1994, p. 138).
A segunda garantia, de acompanhamento contínuo da colocação em natureza, objetiva, e da colocação em sociedade, livre:
Todos os conceitos, todas as instituições, todas as práticas que vierem a atrapalhar a objetivação progressiva da natureza – a colocação em caixa-preta – e simultaneamente a subjetivação da sociedade – a liberdade de manobra – serão vistas como nefastas, perigosas e, resumindo, imorais (LATOUR, 1994, p. 138).
 A terceira garantia, de redefinição da liberdade como capacidade de triagem das combinações hibridas que não depende mais do fluxo temporal homogêneo:
A liberdade não se encontra mais apenas no polo social, ela ocupa também o meio e a parte de baixo, tornou-se capacidade de diferenciação e de recombinação das confusões sociotécnicas (LATOUR, 1994, p. 139).
 E a quarta garantia – talvez a mais importante –, é a de substituir a louca proliferação de híbridos por uma produção consensual e regulamentada dos mesmos:
Talvez seja chegada a hora de voltar a falar em democracia, mas de uma democracia estendida às coisas em si. Não podemos cair de novo no golpe de Arquimedes (LATOUR, 1994, p. 140).
Toda postulação da antropologia simétrica prepara o terreno para uma abordagem metodológica, que é o que nos interessa mais de perto para a constituição desse “fundo” que mencionamos, chamada de teoria do ator-rede (ANT) (12).

A ANT propõe o social como uma rede heterogênea. Rede, não no sentido estático e objetivado com que compreendemos a palavra, em comum; mas, principalmente, como efeitos de rede, ou seja, como interações que acontecem e produzem o social.

Vamos partir desta unidade mais simples, que é a interação. Assumamos que interação é tudo o que há (LAW, 2012). Estendamos a interação de modo a incluir, também, os não-humanos (objetos, normas, etc). Estas interações são instáveis, mais ou menos fugazes, e produzem uma impressão de solidez e de consistência que oculta o fato de serem relações de poder geradoras do social.

Falamos de não-humanos e é necessário nos determos sobre esta peça fundamental postulada por LATOUR (et al.). Em sua Terceira fonte de incerteza: os objetos também agem (2012, p.97 a 128), o autor começa polemizando entre o reconhecimento feito pela sociologia do social de que a sociedade é, sim, profundamente desigual e assimétrica, e suas afirmações anteriores, de que “não existem grupos, só formação de grupos” (13) e de que “a ação é assumida” (14), que, aparentemente, contestam essa certeza basilar. Se assim fosse – diz ele –, a ANT não seria mais do que um dos sintomas desse espírito de mercado sempre pronto a assegurar que todos têm a mesma oportunidade; ele, inclusive, cita autores que apoiam suas críticas à ANT nesta argumentação. Na defesa de sua posição Latour coloca que, justamente para explicar as diferenças e assimetrias é que é necessário não tomá-las como um a priori, mas como um resultado final de um processo. Na busca dos geradores desse processo, deve-se extrapolar o campo antes delimitado pela sociologia do social e considerar outros tipos de atores que não os sociais:
“Em princípio, você poderia percorrer um supermercado imaginário e estacar diante de uma gôndola cheia de ‘vínculos sociais’, com outras alas exibindo conexões ‘materiais’, ‘biológicas’, ‘psicológicas’ e ‘econômicas’. Para a ANT, como agora já sabemos, a definição do termo é outra: não designa um domínio da realidade ou um item especial; é antes o nome de um movimento, um deslocamento, uma transformação, uma translação, um registro. É uma associação entre entidades de modo algum reconhecíveis como sociais no sentido corriqueiro, exceto durante o curto instante em que se confundem” (LATOUR, 2012, p. 99).
As entidades dos diversos campos – podemos dizer assim – estão sociais como decorrência de uma associação, e não são sociais, sempre, essencialmente, aprioristicamente (15). Se a rubrica “social” passa a poder contemplar elementos de todos os campos, então o próprio conceito de “ator” deve ser expandido. Para a ANT, qualquer coisa que modifique uma situação fazendo diferença é um ator – ou, caso ainda não tenha figuração, um actante. É claro que este reconhecimento não conclui que os actantes sejam determinantes da ação:
“A ANT não alega, sem base, que os objetos fazem coisas ‘no lugar’ dos atores humanos: diz apenas que nenhuma ciência do social pode existir se a questão de o quê e quem participa da ação não for logo de início plenamente explorada, embora isso signifique descartar elementos que, á falta de termo melhor, chamaríamos de não humanos” (LATOUR, 2012, p.109).
Um exemplo: as grandes cidades vivem, quase sem exceção, problemas diários com os engarrafamentos de veículos. Nos horários de rush, milhares de pessoas permanecem paralisadas entre destinos, por conta da incapacidade pública em administrar o transporte dos cidadãos. Uma abordagem sociológica tradicional tenderia a considerar, ao investigar esse fenômeno, as pessoas envolvidas, as instituições, o poder público, os modelos políticos, em teoria e na prática; tenderia, muito provavelmente, a partir de uma modelização prévia,de uma explicação preliminar sobre o social para, em seguida, tentar encaixar o fenômeno concreto. Poderia optar por privilegiar a agência em sua investigação, no que o olhar do investigador seria atraído por alguns elementos, ou privilegiar a estrutura, fazendo, com isso, outras escolhas. Poderia verticalizar seus procedimentos, olhando as relações de poder de cima para baixo, do instituído ao instituinte, ou ao contrário; ou horizontalizá-las, procurando enxergar as micro-histórias contidas no engarrafamento.

Alguns pontos de distinção merecem um recorte didático: a abordagem tradicional não consideraria, em momento nenhum, os carros como “atores” no engarrafamento, por mais que sua presença (em certo momento e em certa quantidade) seja o fator mais determinante para a ocorrência do fenômeno (16). Sim, porque se o transporte predominante fosse a bicicleta, por exemplo, não existiria o engarrafamento (17). A abordagem tradicional, também, não se aproxima do fato social desarmada de uma teoria prévia, seja qual ela for. Não se achega desinformada. Não parte, apenas, da descrição dessa menor parte que é a interação, considerando-a como tudo o que há, para construir uma rede heterogênea momentânea.Se os carros são importantes, o são os sinais de trânsito. E as normas de trânsito. E os cintos de segurança (18).

 Quando estas relações – quando as redes – são fortes e estabilizadas, elas somem de nossa percepção, são subsumidas pelo todo maior e mais dinâmico. Podemos dizer que ocorrem pontualizações, ou seja, ocasiões em que aquele fragmento de rede se encontra de tal forma integrado e consistente que podemos ignorá-lo como sendo um todo. Cotidianamente, não andamos identificando e dando atenção a todas as redes pelas quais transitamos e que se formam e desfazem; as tomamos como dadas, e ponto. Porém, quando a expectativa é quebrada, quando a rotina é rompida e esse contrato informal não é cumprido, descobrimos uma complexidade inaudita, a interação de inúmeros elementos inesperados.

Por exemplo, se em nossa rotina não vivenciamos a ocorrência dos engarrafamentos. Se cumprimos um ritual diário de acordar na mesma hora, praticar a mesma higiene, alimentação e saída para o trabalho, dirigindo nosso veículo por um percurso sempre vencido no mesmo tempo. Trajeto ao som da mesma estação de rádio, ouvindo as notícias do dia. Esta descrição sintetiza – por isso obscurece – a presença de um sem número de humanos e não humanos compostos para performar o cotidiano, para atualizar o real. São pessoas além do próprio sujeito da narrativa (guardas de trânsito, outros motoristas), são semáforos e quebra-molas, são combustíveis e lubrificantes, são as normas de trânsito e as condições meteorológicas. Tudo tido como desprezível porque a rede, funcionando bem – pontualizada – se esconde em uma relação gestaltiana entre figura e fundo.

Entretanto, se outro humano, em outro ponto da rede, porque enfrenta problemas familiares (descobriu recentemente que o filho adolescente está se envolvendo com drogas na escola), esqueceu-se de revisar o automóvel (que vinha dando sinais inequívocos de que precisava ser levado a um mecânico) e o mesmo quebra no meio da estrada, obstaculizando o tráfego em um ponto da rodovia no qual nunca isso antes aconteceu, nosso protagonista terá de vivenciar um engarrafamento inaudito, que romperá furiosamente com sua rotina, com seu cronograma diário de atividades, expondo a intrincada teia heterogênea de relações entre humanos e híbridos da qual ele faz parte – sem ter atentado nunca para isso – e que é a camada explicativa mais profunda de toda a realidade a sua volta (19).

Chegamos a outro conceito básico da ANT, que é o de tradução. Se tudo o que existe são redes heterogêneas compostas de interações diversas entre elementos, a sociologia correspondente a esta ontologia deve se interessar por
...como atores e organizações mobilizam, justapõem e mantêm unidos os elementos que os constituem. Como atores e organizações algumas vezes conseguem evitar que esses elementos sigam suas próprias inclinações e saiam. Como eles conseguem, como um resultado, esconder, por um certo tempo, o próprio processo de tradução e assim tomar uma rede de elementos heterogêneos, cada qual com suas inclinações, em alguma coisa que passa por um ator pontualizado (LAW, 2012).
Tradução, portanto, é essa criação de composições, de resultantes efêmeras que respondem como atores, mas que são, em si mesmas, redes também. Na tradução, aos actantes são atribuídos papéis, identidades, interesses, cursos de ação a serem seguidos – que eles podem seguir ou não – mas que não existem determinados de fora, porém sempre de dentro da dinâmica própria da rede. Segundo CALLON (1986): “[tradução é] uma definição de papéis, uma distribuição de papéis e o delineamento de um cenário.” O homem que usa um celular enquanto caminha pela avenida cheia de engravatados representa uma tradução, porque o ator que ali é visto e que passa despercebido, representa uma rede muito maior, ali sintetizada, subsumida na rotina, e que mobiliza o sujeito do celular, sua prótese (o aparelho), todos os outros atores que viabilizam o funcionamento do celular (técnicos, itens eletrônicos, etc). Esta tradução será tão mais convincente quanto mais os actantes angariarem aliados dentre os outros actantes, de modo a estabilizar a tradução.

Já podemos arriscar percorrer aquela ponte entre Agamben (dispositivos e profanações, nosso corte) e a ANT (nosso fundo). Para aquele autor, como vimos, interessa extrapolar o entendimento proposto por Foucault sobre os dispositivos, radicalizando o conceito ao ponto de dividir o real em dois grandes grupos: os viventes e os dispositivos, sendo a incessante relação entre eles a geradora dos processos de subjetivação. Os autores aqui trabalhados propõem que os viventes humanos se assujeitam em um processo que é sempre uma relação de poder, em sentido mais amplo e pulverizado, como nos propõe Agamben, destacando o cenário capitalista contemporâneo; e interessa
entender profundamente este processo de criação de sentido.

Graças à antropologia simétrica, podemos ir além das relações de poder entre homens, assim como de um social feito de homens, incluindo em uma mesma malha (rede heterogênea) todos os actantes que fazem poder pontualmente, momentaneamente, e, agindo no sentido inverso da abordagem sociológica tradicional, entender esta gênese mínima do poder.

Tendo cruzado a ponte, chegamos ao que nos interessa: o aluno do CMRJ.

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(1) Tomamos como base, para fim dessa exemplificação, o ano em que o Instituto ocupou o endereço da Rua Mariz e Barros.

(2) Nesta citação, ao mesmo tempo em que se confirma a existência do dispositivo como estratégia, já que ele se presta à condução do sujeito, se apresenta a possibilidade da liberdade individual de desbordá-lo (porque é um obstáculo).

(3) Hyppolite, mencionando Hegel, lembra a distinção entre “religião natural” e “religião positiva”. A primeira designa a relação espontânea do humano com o divino; a segunda, o conjunto de crenças, ritos, regras que, em determinado momento de determinada sociedade, são impostos ao indivíduo para a vivência da religião (AGAMBEN, 2009, p. 30).

(4) Em AGAMBEN (2007), a ampliação do alcance do que é um dispositivo (uma grande categoria complementar aos viventes) pode parecer desfocá-lo como instrumento de uma relação de poder, se a pensamos como relação vertical, mas – talvez aproximando a definição de sua origem em Foucault – identifica melhor o dispositivo como instrumento da microfísica do poder. Esclarecendo: fragmentados como na proposição de Agamben, sendo tudo aquilo que entra em relação com os viventes, sujeitando-os, os dispositivos se prestam melhor ao entendimento do que seja “poder” em sua versão atomizada, cotidiana, a qualnão se presta mais nos dias de hoje – como o autor irá concluir – à ideologia.

(5) Isso pode produzir a impressão de que a categoria da subjetividade no nosso tempo vacila e perde consistência; mas se trata, para ser preciso, não de um cancelamento ou de uma superação, mas de uma disseminação que leva ao extremo o aspecto de mascaramento que sempre acompanhou toda identidade pessoal (AGAMBEN, 2009, p.42).

(6) Ainda no interesse de melhor situar o termo “dispositivo” entre os vários autores que dele lançam mão, citamos DELEUZE (1994) quando, descrevendo os diversos componentes do dispositivo foucaultiano – linhas de visibilidade, de enunciação, de força, de subjetivação, de brecha, de fissura, de fratura –, se detém por mais tempo sobre as linhas de subjetivação, reconhecendo, em primeiro lugar, a herança deixada por Foucault aos seus seguidores, quanto à investigação de outras formas de subjetivação que não aquelas por ele estudadas; em segundo lugar, tomando para si a parte que lhe cabe dessa herança-missão, sugere a existência e relevância dos processos de subjetivação dos excluídos, daqueles não pertencentes à nobreza, enfatizando, neste ponto, que a grande certeza é a não existência de universais, que tudo são variações. Entendemos que esta leitura específica de Foucault por Deleuze vai ao encontro do proposto por Agamben e prepara o terreno para, mais à frente, as colocações da antropologia simétrica e da teoria do ator-rede (LATOUR, 1994 e 2012; LAW, 2012). Também em DELEUZE (1994) encontramos a descrição do processo de transformação de uma sociedade disciplinar, na qual o controle se dava de fora para dentro, como no processo de assujeitamento da pessoa pelo Estado, para uma sociedade de controle, na qual o controle já se encontra interiorizado, introjetado.

(7) AGAMBEN (2007) observa que a verdadeira origem da palavra religião é o latim relegere, e não religare. O primeiro indica a atitude de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as relações com os deuses, a inquieta hesitação (o “reler”) perante as formas – e as fórmulas – que se devem observar a fim de respeitara separação entre o sagrado e o profano (p.66). Religião, assim, tem a ver com o próprio ato de separação (no sentido de sacralizar, consagrar) e não com o ato de religação.

(8) O conceito de homo sacer (AGAMBEN, 2010) pode ter potencial explicativo para a complexa relação entre a formação dos militares brasileiros – em particular os do Exército –, conforme investigada por MAGALHÃES (2010) em sua conceituação da “pedagogia do guerreiro”, e as demandas tecnicistas da sociedade atual.

(9) E nada é mais impressionante do que o fato de milhões de homens comuns conseguirem realizar na própria carne talvez a mais desesperada experiência que a cada um seja permitido realizar: a perda irrevogável de todo o uso, a absoluta impossibilidade de profanar (AGAMBEN, 2007, p. 74).

(10) “Os críticos desenvolveram três repertórios distintos para falar de nosso mundo: a naturalização, a socialização, a desconstrução. Digamos, de forma rápida e sendo um pouco injustos, Changeux, Bourdieu e Derrida. Quando o primeiro fala de fatos naturalizados, não há mais sociedade, nem sujeito, nem forma do discurso. Quando o segundo fala de poder sociologizado, não há mais ciência, nem técnica, nem texto, nem conteúdo. Quando o terceiro fala de efeitos de verdade, seria um atestado de grande ingenuidade acreditar na existência real dos neurônios do cérebro ou dos jogos de poder” (LATOUR, 1994, p. 11).

(11) Neste ponto, cabe inserir a diferenciação feita pelo autor entre as “matérias de fato” e as “matérias de interesse” (LATOUR, 2004). Criticando os rumos de seu questionamento sobre a objetividade da ciência, Latour propõe uma nova forma de empirismo, já que a forma anterior foi desacreditada pela exacerbação da dúvida (que ele chamou de “revisionismo instantâneo”). Retornando à Heiddeger, o qual discute profundamente a diferença entre “coisas” e “objetos” – atribuindo valor e relevância estética as primeiras (porque manufaturadas, ou seja, por terem certa relação de criação com o homem) e desprezando as segundas –, Latour propõe que se considere a mesma relevância aos objetos. Para tanto, é necessário desmontar a diferença imposta pelos cientistas, os quais sempre distinguiram o que seria sério, objetivo, racional – a “matéria de fato”, livre do fetichismo; do que seria ingênuo, repositório dos desejos, das relações de dominação – a “matéria de interesse”. Concluindo que toda matéria de fato começou sendo uma matéria de interesse, Latour sugere pela consideração de todos os olhares na composição das coisas; não só o olhar da tecnologia, mas das humanidades: “o crítico é aquele para quem, se algo foi criado, é frágil e merece ser cuidado” (LATOUR, 2004, p.246).

(12) Mantivemos a sigla em inglês, como o autor, para aproveitar a referência à formiga (ant), que também percorre um longo caminho, centímetro a centímetro, como que cega e obcecada: “Uma formiga (ant) escrevendo para outras formigas, eis o que condiz muito bem com o meu projeto!” (LATOUR, 2012, p.28).

(13) Primeira fonte de incerteza” (LATOUR, 2012, p. 49 a 69).

(14) Segunda fonte de incerteza” (id, ibid, p. 71 a 96).

(15) “Assim, para a ANT, social é o nome de um tipo de associação momentânea caracterizada pelo modo como se aglutina assumindo novas formas” (id, ibid, p.99-100).

(16) Uma exceção a título de confirmação é o trabalho sobre automobilidade de John Urry (2004, 2011), que coloca o automóvel como o menos estudado dos elementos-chave para entender a mobilidade em tempos de globalização (como o computador, a televisão, o cinema). Seguindo um tratamento da questão próximo ao da Teoria do Ator-Rede (ANT), Urry rastreia a rede entre a gigantesca indústria automotiva e o consumo gigantesco de automóveis; as demais indústrias que se estabelecem subsidiárias do automóvel, como a de construção de estradas, de peças e acessórios, de combustíveis; a privatização da mobilidade que se impõe subordinando outras mobilidades (o pedestre, o ciclista, etc); a mobilização da arte para veicular uma associação entre a ‘boa vida’ e a mobilidade automotiva; e a gigantesca mobilização de recursos naturais e os respectivos danos causados pelo seu consumo. A figura do ‘motorista de carro’ (car-driver) é exatamente este híbrido do humano e da máquina, mas também – e principalmente – a rede estabelecida entre motoristas, indústrias, normas de trânsito, produtos industrializados diversos; este todo que favorece a ‘affordance’.

(17) “Segundo a ANT, se quisermos ser um pouquinho mais realistas, em relação aos vínculos sociais, que os sociólogos ‘razoáveis’, teremos de aceitar isso: a continuidade de um curso de ação raramente consiste de conexões entre humanos (para os quais, de resto, as habilidades sociais básicas seriam suficientes) ou entre objetos, mas, com muito mais probabilidade, ziguezagueia entre umas e outras” (LATOUR, 2012, p. 113).

(18) Mas o caso geral que é enfatizado pela teoria do ator-rede é esse: se os seres humanos formam uma rede social, isso não é porque eles interagem com outros seres humanos. É porque eles interagem com seres humanos e com muitos outros materiais também (...) E esse é o meu ponto – se esses materiais desaparecessem também desapareceria o que às vezes chamamos de ordem social. A teoria do ator-rede diz, então, que ordem é um efeito gerado por meios heterogêneos (LAW, 2012).

(19) O exemplo nos remete a outro conceito importante na ANT, que é o de caixa-preta, como um conjunto tão bem resolvido que dele dispomos sem a ele darmos atenção. É o fragmento de rede simplificado ao ponto de aparentar uma unidade interessante, uma ilusão de conjunto que nos dispensa a preocupação. Quando surge o problema, o imponderável, vem a tona a complexidade oculta pela simplificação. É necessário, então, abrir a caixa-preta, esclarecê-la, eviscerar a intrincada rede e seus elementos.