CARVALHO (2005) chama nossa atenção para as características do Exército na Primeira República. Infere-se que a oficialidade era mais jovem e mais pobre que aquela substituída na queda do império. Estavam no poder os “doutores” de Benjamim Constant, ocupando uma estrutura piramidal de base muito larga, ou seja, fortemente apoiada em tenentes. Estes oficiais ocupavam a maior parte das funções da oficialidade, criando um cenário, pela baixa perspectiva de mobilidade na carreira, favorável à rebelião.
Seu positivismo era muito peculiar. Enquanto que, para Benjamim Constant, o cidadão seria o soldado em armas até que “[o] progresso, produzido pelo avanço do regime industrial, tornaria os exércitos entidades inúteis e faria com que fossem recolhidas ao museu da história as armas que se empregam como elementos de destruição” (CONSTANT apud CARVALHO, 2005, p.39), para aquela jovem oficialidade o Exército deveria exercer uma função moderadora dentro da sociedade.
Distribuindo-se em tendências mais ou menos interventoras, o Exército da República Velha se consolidou como organização capaz de pensar e executar uma política de defesa, para o que foi necessária a extinção da Guarda Nacional, subsequente à criação do alistamento universal e do sorteio.
Os efetivos aumentaram e se distribuíram melhor no território brasileiro; foram melhor equipados, treinados e formados, sobre o que não cabe a esta tese aprofundar as inúmeras reformas ocorridas nos currículos das escolas militares (1). Consolidou-se um perfil de Força Armada intervencionista, não a partir de seus componentes (em particular, dos tenentes), mas do todo – o intervencionismo dos generais ou do Estado-Maior, como sugere CARVALHO (2005), lembrando que, enquanto na França da revolução a sociedade queria entrar no Exército, tirando-o da nobreza, no Brasil foi o contrário: o Exército, já apartado das oligarquias, queria seu lugar na sociedade.
É neste cenário que temos de colocar a figura do Marechal José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque.
O Marechal José Pessoa nasceu em 1885 no município de Cabaceiras, interior da Paraíba. Em 1903, ingressou na Escola Preparatória e de Prática do Realengo, Rio de Janeiro. Com o fechamento da Escola Militar da Praia Vermelha, em 1904, cursou sua formação de oficial em Porto Alegre. De sua atuação como oficial, nos interessa destacar o período de três anos que passou na Europa, em estudos, no qual – como sugere CÂMARA (2011) – teria amadurecido a visão de um Exército ligado à sua história, referenciado em suas tradições, e, ao mesmo tempo, não descuidado dos avanços tecnológicos. Este visão, a qual nos interessa associar com a pedagogia patronímica em formação – da qual será o principal ideólogo – será posta em prática, por ele, com imensa riqueza de detalhes.
A partir de 1931, como comandante da Escola Militar do Realengo, o Marechal José Pessoa implementou um vasto conjunto de códigos centralizados na figura do Duque de Caxias. Como já citado aqui, a turma de oficiais formada em 1925 recebeu como patrono este oficial, inaugurando a tradição, de origem francesa, das homenagens que servem de modelo. Em seu comando, o então coronel José Pessoa partiu da idealização das virtudes do Duque de Ferro para implementar um programa de formação afetiva que norteou o Exército até os dias de hoje:
“A aplicação dessa forma ideológica resultaria na prática de um conjunto de ações educacionais de natureza predominantemente afetiva. A adoção dessas ações, por seu turno, conduziria à consciência da valorização moral, ética, intelectual e profissional do futuro oficial. Em primeira instância, atingiria o espírito militar do próprio cadete; em círculo maior, o coração e a mente do público interno do Exército e, de forma mais abrangente, o coração do público externo do Exército, na fixação do significado do valor nacional do papel do oficial, o qual chegou a entrar para o vocabulário popular com a expressão ‘Caxias’ para designar pessoa de comportamento correto e mesmo rigoroso consigo e com o trato das coisas públicas na sociedade brasileira” (CÂMARA, 2011, p. 89).
A seguir apresentaremos, em tópicos sucintos, os principais itens dessa reforma simbólica que repercutiram na iconografia da Força, chegando à modelização dos gestos, vestes, costumes e comportamentos nos Colégios Militares.
O título de cadete (2) – como já mencionado aqui, este título remonta ao exército português, tendo vigorado no Brasil de 1811 a 1889. Foi extinto com a proclamação da república, por sua óbvia referência à nobreza e à aristocracia consanguíneas do Império. Retomado pelo Marechal, o título – agora transitório – passa a representar um conjunto de valores associados à Caxias (“cadetes de Caxias”) que o aluno da escola militar deveria cultuar. Não mais associado ao berço, mas ao mérito – “(...) outorgado não pela nobreza hereditária, mas pela nobreza da inteligência, da cultura e da formação moral, baseada na integridade, na probidade, na honestidade e na lealdade” (CÂMARA, 2011, p.93)– o cadetismo se encaixa nessa invenção das tradições a serviço da pedagogia patronímica, já que atualiza um passado histórico julgado interessante à construção de um novo código de valores.
Os uniformes – até então, o fardamento dos alunos não se distinguia do geral das fardas do Exército. Coerente com seu plano geral de distinção para valorização dos cadetes, o Marechal José Pessoa propôs um vestuário que tornasse o cadete inconfundível e reestabelecesse seus liames históricos, notadamente pelos atributos e emblemas da indumentária militar, tudo enquadrado nos mais severos princípios da heráldica (CÂMARA, 2011, p. 93). Fortemente amparado nos uniformes de 1852 a 1860, os aspectos de tecido, corte, cor e adereços implementados na década de 1930 remetem a um conjunto de valores apoiados no passado e foram defendidos em diversas vezes, tempos depois, como fundamentais para a preservação da identidade da Força Armada.
O brasão do cadete – este símbolo criado também pelo Marechal reúne várias referências:
“(...) um escudo orlado de azul-turquesa, tendo em campo de ouro operfil estilizado das Agulhas Negras e, em abismo, uma torre de ouro. O mote inicial ‘Escola Militar’ posteriormente foi substituído por Agulhas Negras, em azul fitão em ouro; a estrela representativa da Escola, em ouro na parte inferior, lanças e fuzis em riste e um canhão por trás do terço inferior do escudo, por sua vez emoldurado com folhas de carvalho em sua própria cor” (CÂMARA, 2011, p.99).É importante lembrar, em proveito do argumento aqui desenvolvido, como foram campo de disputas as tentativas de modificação desse símbolo, ao longo da história recente do Exército. O brasão original detinha a inscrição “Escola Militar”, sem fazer referência ao bairro do Realengo, RJ, no qual estava localizada a escola, porque se queria valorizar o ambiente de formação da oficialidade, sem fixá-lo em um espaço que, já então, se pretendia mudar; na década de 1970, o brasão seria “desarmado” das lanças, fuzis e canhões (referências às armas de cavalaria, infantaria e artilharia), em uma tentativa de reequilibrá-lo com as demais armas, quadros e serviços (comunicações, material bélico e intendência) excluídos do desenho original; o desenho em uso, hoje, retoma os armamentos, bem como se embasa na inscrição “academia militar”, fazendo referência à AMAN.
O espadim – réplica em tamanho menor da espada usada pelo Marechal de Ferro na pacificação de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul (1842 – 45), no comando contra Oribe e Rosas (1851 – 52) e na Tríplice Aliança (1865 – 70). O espadim é entregue em cerimônia de confirmação aos cadetes do primeiro ano, e devolvido à AMAN na primeira parte da cerimônia de declaração de oficiais, no quarto ano. O ato de recebimento é acompanhado de um juramento solene que enfatiza a pedagogia patronímica: “Recebo o sabre de Caxias como o próprio símbolo da honra militar”.
O Corpo de cadetes – sua criação objetivou distinguir em um organismo próprio o que estava diluído, na forma do “corpo de alunos”, dentro do estabelecimento de ensino. No “Corpo de cadetes” – criado em 25 de agosto de 1931, com a presença do chefe do governo provisório, Getúlio Vargas – o Marechal José Pessoa passou a ter melhores condições paraimplementar o código de valores desejado, de controlar hábitos e comportamentos pela manutenção da disciplina. Esta disciplina deveria ser garantida pelos próprios cadetes, agora escravos de sua dignidade pessoal. Como mais um símbolo, o corpo de cadetes possibilita certo sentimento de pertença aos que conseguem ingressar nele, se manter e dele sair habilitados ao oficialato, fazendo parte de todo esse projeto de “aristocracia do mérito” buscado pelo Marechal.
É importante destacar, ainda que sem maior espaço para aprofundamento, o grande projeto do Marechal José Pessoa para a fundação –muito mais do que a reforma que conduziu na Escola Militar do Realengo ou, até mesmo, da criação da Academia Militar das Agulhas Negras – da identidade do militar do Exército, no século XX. Tendo em mãos o principal centro disseminador da cultura desse oficialato, que é a escola de formação, o Marechal estendeu sua preocupação, não só pelos símbolos planejados e implementados de que fizemos referência acima, por um rol muito mais extenso – e sempre coerente – de componentes, os quais podemos enfeixar como uma “disciplina militar” (3) até então inédita.
Porque nunca é demais lembrar que os atributos que associamos, hoje, ao ethos militar não tem lugar no Exército do século XIX, ou lá se encontram com menor intensidade. Por conta da formação conjunta com a dos engenheiros; das mudanças constantes dos currículos nas escolas; dos conflitos entre escolas de pensamento (TREVISAN, 2011); dentre outros motivos, é somente a partir da intervenção do Marechal José Pessoa que se sistematizou uma pedagogia patronímica em que toda uma constelação de símbolos é orquestrada em favor da identidade do militar do século XX.
As preocupações do Marechal José Pessoa chegaram ao ponto de procurar inserir o cadete em um ambiente social julgado favorável, bem como de afastá-lo de outros ambientes. Assim é que, como assinala CASTRO (2002), a direção da Escola Militar fazia contatos com clubes de prestígio da época, como o Fluminense e o Tijuca Tênis Clube, buscando incluir os cadetes em festas, bem como desestimulava o comparecimento dos mesmos em festejos suburbanos no Méier e em Bangu.
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(1) Sobre o assunto ver, principalmente, MOTTA (1998).
(2) "No sentido militar do termo, ‘cadete’ era o filho destinado às Forças Armadas para exercer postos de mando, em nível de oficial. Em 1757, passou a ser adotado em Portugal unicamente com sentido militar; representava o filho mais velho do nobre, a serviço do rei. Com a vinda da Família Real portuguesa para sua colônia na América, foi introduzido no Brasil” (CÂMARA, 2011, p. 91).
(3) “Disciplina” que ele opunha à “politica”: se a primeira une, a segunda divide (CASTRO, 2002): “Não sou político. Não quero ser. A nossa maneira de fazer política tem sido a gênese de muitas infelicidades para o país (...) Ao assumir esse comando, reuni mestres e cadetes, advertindo-os de que seria desaconselhável o trato de assuntos em desacordo com a disciplina militar, separando-me completamente dos políticos. Só não chamo a isso um divórcio porque nunca estivemos juntos. Não se deve inferir daí que eu os condene. Absolutamente (...) Mas a política, para os políticos e mais ninguém” (MARECHAL JOSÉ PESSOA apud CASTRO, 2002, p.41).
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