carneiro2

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sábado, 1 de fevereiro de 2014

Capítulo 1: Fundamentação teórica

SOBREPONDO OLHARES

“Fim de uma tarde de outono na cidade do Rio de Janeiro. Por um dos acessos à estação de metrô São Francisco Xavier, no tradicional bairro suburbano da Tijuca, passa apressado um aluno do ensino médio público. Ainda que rapidamente, sua passagem deixa ver que seu uniforme não lhe cai bem (ainda que ao observador não seja informado o motivo: seus pais escolheram roupas em tamanho maior, para aproveitá-las por mais tempo, apesar do crescimento do seu corpo). Também não o ajuda um aspecto de possível relaxamento, talvez desleixo, no qual a camisa está fora da calça, os sapatos e o cinto sem brilho, um improvável chapéu se equilibrando na cabeça em modo mais improvável ainda; e a indefectível mochila lhe amarrota até a alma.

Como em qualquer horário do rush, este passageiro parece sumir na desatenção de todos. Ele espera a composição, entra junto com os demais e, na impossibilidade de se sentar em algum banco, se senta no chão, pernas recolhidas junto ao peito. É difícil dizer se realmente cochila, como parece. Ele retorna para casa, após mais de doze horas em sua rotina de estudante”.

Neste ponto de uma descrição intencionalmente tendenciosa, o leitor deve ter construído, ainda que em caráter provisório, uma imagem do personagem que esboçamos. Com certeza, lançando mão de conceitos repletos de vivências pessoais (“aluno do ensino médio público”, “uniformes”, etc), pôs em foco o adolescente em questão. Como dito, nossa descrição é tendenciosa: ela escolhe o que quer esconder, mais do que o que quer mostrar, em uma pirotecnia que esclareceremos a seguir, não sem antes embaralhar a imagem, invalidando as lentes conceituais disponíveis para a compreensão do observado.

Reapresentaremos o aluno acima, antecipando a pedra angular de sua descrição: estamos tratando de um discente do Colégio Militar do Rio de Janeiro (CMRJ).

Filme "De passagem" (2003)
“Fim de uma tarde de outono na cidade do Rio de Janeiro. Por um dos acessos à estação de metrô São Francisco Xavier, no tradicional bairro suburbano da Tijuca, passa apressado um aluno do CMRJ. Ainda que rapidamente, sua passagem deixa ver que sua farda (1) não lhe cai bem (ainda que ao observador não seja informado o motivo: seus pais escolheram roupas em tamanho maior, para aproveitá-las por mais tempo, apesar do crescimento do corpo; é que os custos de manutenção do enxoval impõem esta estratégia). Também não o ajuda um aspecto de possível relaxamento, talvez desleixo, no qual a camisa bege – carregada de símbolos codificados dentro da heráldica do Exército –está fora da calça, os sapatos e o cinto sem brilho, uma improvável boina bordô (2) – fazendo referência ao sangue derramado na Guerra do Paraguai (3) – se equilibrando muito pequena sobre a cabeça em modo mais improvável ainda; e a indefectível mochila preta, que foge às uniformizações nos inúmeros apetrechos pendurados (chaveiros, fitas, bordados) termina por  lhe amarrotar até a alma.

Como em qualquer horário do rush, este passageiro parece sumir na desatenção de todos, ainda que um adolescente fardado seja digno de nota. Ele espera a composição, entra junto com os demais e, na impossibilidade de se sentar em algum banco, se senta no chão, pernas recolhidas junto ao peito, maculando a pompa e a circunstância de seu fardamento, sua história e tradição (4). É difícil dizer se realmente cochila, como parece. Ele retorna para sua casa distante, muito mais que a média da distância percorrida por alunos do ensino médio da rede pública civil de ensino, após mais de doze horas em sua rotina de estudante (5)”.

Foi nossa intenção, na confrontação de duas descrições sumárias de um pequeno trecho da vida estudantil de um aluno do CMRJ, chamar a atenção do leitor para este estranhamento subsumido em nosso cotidiano: que existe um aluno do ensino médio público que não faz parte da rede pública; que ele anda fardado e submetido – até certo ponto – à lógica castrense, sem ser militar; que sua existência, hoje, merece uma investigação que evite leituras deterministas, dedutivas, apriorísticas e distanciadas.

Pretendemos recolher estes cacos e anunciar a consolidação de um mosaico (6). Ainda nos cabe embaralhar as peças um pouco mais, pedindo paciência ao leitor. Pretendemos atualizar, a seguir, a discussão entre as abordagens sociológicas incluindo a contemporaneidade, para contar novamente e de outra forma essa história, chegar aos dias de hoje e ensejar uma nova aproximação do Colégio e de seus alunos.

Neste intuito de evidenciar limitações da abordagem tradicional, lembramos, com LATOUR (2012, p.18), que “Na fase atual de seu desenvolvimento, já não é possível precisar os ingredientes que entram na composição do domínio social”.Se, para uma sociologia tradicional (que passaremos a chamar, com este autor, de “sociologia do social”), a sociedade é pressuposta como suficientemente homogênea para poder ser enfeixada em classificações apriorísticas, na abordagem que seguiremos (chamada pelo autor de “sociologia das associações”), as definições tornam-se incertas e, como consequência, suas fronteiras também. Se, na modernidade, a ciência tinha uma importância que levou à sua especificidade, delimitação e circunscrição, hoje, na contemporaneidade em que ela se dilui inespecífica, a ciência parece estar em todos os lugares via tecnologia (7). Da mesma forma, a sociologia – como “ciência do social” – que buscou se estabelecer seguindo a ciência e seus pressupostos, parece hoje não ter um objeto especificado, delimitado e circunscrito:
“O social parece diluído por toda parte e por nenhuma em particular. Assim, nem ciência nem sociedade permaneceram estáveis o suficiente para cumprir a promessa de uma forte “socio-logia” (LATOUR, 2012, p.19).
 A primeira tentativa de delimitação foi, justamente, a busca de um fenômeno que fosse específico da sociologia: “ordem social”, “prática social”, estrutura social”, etc. E que, assim, pudesse ser protegido um campo de atuação autônomo para a nova ciência. Este processo de delimitação nos levou a pensar que existe um “contexto social” dentro do qual ocorrem atividades não sociais. O uso dessa distinção tem levado os sociólogos a se verem como os encarregados em lidar com os resíduos não explicados das outras áreas, como a economia, o direito, a psicologia e assim por diante. Sempre existiria algo especificamente “social” nesses outros campos.

Para uma reflexão direcionada à complexidade do contemporâneo, nos parece mais frutífero fazer uso daquilo que o autor chama de “sociologia das associações” (8), a qual, não reconhecendo esta especificidade a priori do social, pode rastrear quaisquer agregados, de quaisquer vínculos – principalmente aqueles considerados não sociais –, chegando ao social depois, ao término, a posteriori.

Neste ponto, é oportuno resgatar a contribuição original de Gabriel Tarde, inclusive – senão principalmente – para clarificar as diferenças entre as sociologias “do social” e “das associações”, bem como o porquê da ascensão da primeira como instituída.

Para este autor, tudo são sociedades: podemos falar de sociedades de átomos, de estrelas, de células; o que importa são as associações que, sempre no particular, no local, no nível micro, constituem alguma coisa que podemos chamar de “social”. Estas coisas – “mônadas” que ele deriva de Leibniz (9) – que Tarde trata como entidades, são as inovações dotadas de vida própria:
“Por isso, toda produção social com certas características marcantes – produto industrial, verso, fórmula, doutrina política surgida em algum canto de um cérebro, sonhos como o de conquista do mundo de Alexandre – procura se multiplicar em milhares e milhões de cópias onde quer que existam seres humanos e só parará quando detida por uma produção rival tão ambiciosa quanto ela” (TARDE apud LATOUR, 2012, p.36).
Se pensamos em Tarde na origem deste pensamento que buscamos resgatar na sociologia das associações, por entendermos que a complexidade do contemporâneo pode ser melhor entendida por ela, temos de pensar em Durkheim na origem oposta, que é a da sociologia do social que se tornou hegemônica para o século XX.

Lançando mão de VARGAS (1994), lembramos que é imprescindível entender o nascimento da sociologia, na França do século XIX, não como algo natural, mas como fruto de uma disputa por legitimação entre discursos que tem de ser situada na crise de uma sociedade incipiente.

O discurso teológico – único habilitado a enunciar a “verdade” – cede lugar ao discurso científico, mas qual discurso científico? Naquela França caótica, desorganizada, sulcada pela derrota para a Alemanha (1870) – uma nação “da ciência” – e pela repressão à Comuna de Paris (1871), era necessário que a ciência servisse à organização do Estado, via educação. É neste ponto que Durkheim, educador por toda a sua vida, contribui para a instituição de certo discurso científico, propagado na educação laica e pública. Como atesta VARGAS (1994, p.8):
“Daí poder-se arriscar a dizer que o sucesso da sociologia durkheimiana não se prende exclusivamente, sequer prioritariamente, a seus méritos científicos, mas sim a sua incrível adequação aos problemas da época, à aguda atualidade de seu discurso no contexto da época. A meu ver, o sucesso durkheimiano está fundamentalmente relacionado com o fato de Durkheim ter sido um homem que respirava profundamente os ares de seu tempo. Mais precisamente, ele está relacionado com a grande afinidade entre seu discurso e a política republicana, embora nem o discurso de Durkheim se reduza à política republicana, nem esta àquele”.
 Arriscamos dizer que, extrapolando os limites e o contexto franceses, a sociologia do social “durkheimiana” atendeu à demanda de seu tempo, ainda que não sem vários confrontos com outros pensamentos; serviu à reestruturação do Estado, à moralização do povo e à coesão nacional.

Como o opositor que nos interessa aqui, o pensamento de Tarde é microssociológico, um pensamento da diferença, que induz do particular ao geral, do eventual para o periódico, não trabalhando nas dicotomias“sociedade x indivíduo”, ou “determinismo x livre-arbítrio”, mas nas microrrelações de repetição, oposição e adaptação que se desenvolvem nos indivíduos, ou entre eles, ou melhor, em um plano no qual a distinção entre o social e o individual perde toda nitidez (VARGAS, 1994).

Foge ao escopo deste trabalho, pelo menos neste momento, um maior aprofundamento na obra de Tarde. Ela foi evocada para situar melhor, em sua oposição à obra de Durkheim, a diferença entre duas sociologias e por em relevo certas características da contemporaneidade que, a nosso ver, ratificam a abordagem que estamos seguindo.

Podemos voltar, então, ao nosso objeto principal, o CMRJ, que nascido nas certezas da modernidade e da instituição militar, chega aos nossos dias eivados de incertezas e de diferenças.

*****

(1) As fardas são de uso restrito das Forças Armadas e Auxiliares e têm seu uso, no caso do Exército, normatizado no Regulamento de Uniformes do Exercito (R-124); sendo assim, como os alunos dos Colégios Militares não são militares, seria impróprio tratar suas vestes (que são, sem dúvida, uniformizadas) como um fardamento. Porém, considerando que o Exército regulamenta estes uniformes colegiais dentro do mesmo estatuto no qual normatiza as fardas de seus profissionais e – ainda que mediante flutuações sazonais de intensidade – exige, com o mesmo rigor, o respeito para com elas, seguiremos o tratamento de “fardas” quando nos referirmos às vestes específicas dos alunos dos Colégios Militares.

(2) Principalmente chamada de “boina garança”, fazendo referência a erva da família das rubiáceas, de cuja raiz se extrai um corante vermelho.

(3) A história dos Colégios Militares tem sua gênese na Guerra do Paraguai, porque este evento, do qual regressaram inúmeros mutilados e que provocou extensa orfandade nas fileiras castrenses, forneceu a justificativa para todo o investimento assistencial subsequente.

(4) Que fique claro o teor dramático da imagem: nem todo aluno se utiliza do metrô ou de qualquer outro transporte coletivo, nem, muito menos, todos eles se comportam tão frontalmente contrários à demanda simbólica de sua condição de alunos. O que se intenciona é, partindo de uma observação concreta, ainda que não generalizável, chamar a atenção para um dos vários níveis de estranhamento contidos na situação de “aluno do Colégio Militar”.

(5) Enquanto os alunos da rede pública de ensino se distribuem, ainda que não obrigatoriamente, em um raio menor de distância entre suas casas e suas escolas, configurando uma relação para com “escolas de bairro”, os alunos dos Colégios Militares, atraídos por condições de ensino que lhes são apregoadas como vantajosas, se submetem a rotinas muito mais estafantes de deslocamento colégio-residência. É comum, no caso do CMRJ, alunos despertarem todos os dias às 04:30 horas, para estar em sala às 07:00 horas. Por causa das inúmeras atividades que, frequentemente, exigem suas presenças na parte da tarde, estes alunos acabam retornando somente à noite para suas casas.

(6) Doutorado em Ciências Sociais na PUC-Rio, dentro da linha de pesquisa “Diversidade Cultural no Brasil”, tendo como orientadora a Profª Drª Maria Isabel Mendes de Almeida.

(7) Queremos enfatizar o movimento pelo qual a ciência se impõe em um mundo que não era “científico”, até o ponto em que, sendo tudo “científico”, hoje, pela onipresença da tecnologia, a própria ciência se dilui, não mais se distingue, perde suas delimitações e enfraquece sua especificidade.

(8) “Ainda que a maioria dos cientistas sociais prefira chamar de ‘social’ a uma coisa homogênea, é perfeitamente lícito designar com o mesmo vocábulo uma série de associações entre elementos heterogêneos. Dado que, nos dois casos, a palavra tem a mesma origem – a raiz latina socius –, podemos permanecer fiéis às intuições originais das ciências sociais redefinindo a sociologia não como a ‘ciência do social’, mas como a busca de associações. Sob este ângulo, o adjetivo ‘social’ não designa uma coisa entre outras, como uma carneiro negro entre carneiros brancos, e sim um tipo de conexão entre coisas que não são, em si mesmas, sociais” (LATOUR, 2012, p. 23).

(9) O conceito de mônada (que em grego quer dizer “unidade”) é central para Leibniz (1646 – 1716). Para esse matemático e filósofo alemão, mônada é a parte indivisível de cada coisa, não sendo, portanto, a matéria (res extensa), que é composta e divisível, mas alguma coisa que está além dela. Na mônada está a origem de todo o movimento, da mudança, que Leibniz chama de força. É este aspecto de conter, em si, toda a possibilidade que torna a mônada interessante para autores como Heidegger ou – o que nos interessa aqui – Tarde. Neste autor o conceito se amplia e passa a contemplar todos os entes, vivos ou não e a relação entre eles. A mônada tardiana é a unidade que busca o movimento, a transformação, sempre na direção da diferenciação. Em explícito confronto com a noção darwinista de conservação, segundo a qual os seres tendem a permanecer como são e só se modificam reagindo a uma ação externa (meio), Tarde postulará por uma necessidade de mudança que vem de dentro, que é intrínseca a todos os entes (mônadas).

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