Deixemos um pouco de lado, então, a história dos Colégios Militares. Procuramos contá-la de forma muito resumida, apenas sinalizando como se constrói uma identidade baseada em uma pedagogia de aretês (1), a qual chamamos de patronímica. O rastreamento desse argumento liga a construção da identidade do Exército – muito mais nova do que o uso da “invenção das tradições” pretende nos fazer crer – com o estabelecimento de uma rede de ensino de educação básica destinada à família militar que, de um discurso original apoiado na justificativa assistencial (em um cenário em que só seria possível a solução assistencialista) envereda pela finalidade preparatória, essa sim concreta e eficientemente articulada com os interesses da Força desde o fim do século XIX.
O que mudou, desse passado que as diversas memórias já tornaram idílico, à realidade do século XXI? A rede conta hoje com doze unidades, mais de catorze mil alunos; já fazem mais de vinte anos que as meninas cruzaram os portões, cravando fundo no coração das representações guerreiras (2); uma verdadeira finalidade assistencial brotou da política implementada nos anos noventa do século passado; e a função preparatória desviou-se significativamente da reprodução endógena da classe militar para o prosseguimento em todas as destinações do ensino superior.
Persistem, entretanto, os mecanismos – dispositivos, segundo o tratamento que viemos dando ao conceito nesta tese – atuando na subjetivação desse aluno da educação básica. Persistem as fardas (que agora sabemos como foram instituídas); persistem as normas de gestos, costumes, posturas (que agora reconhecemos a origem). Persiste o código de honra, como núcleo nervoso institucional e que remonta, como rapidamente procuramos apresentar, ao trabalho do Marechal José Pessoa, na primeira metade do século XX.
Tratemos, agora, do espaço e do uso do mesmo. CASTRO (1990) nos fala da criação de certo espírito militar como imprescindível à solidez do meio castrense e, partindo de GOFFMAN (2001), se apropria do conceito de instituição total para lembrar como estas instituições rompem com a separação moderna entre os espaços e os tempos, segundo a qual as pessoas dividem suas vidas entre vários ambientes – para descansar, trabalhar, se divertir, etc. – e entre vários convívios – com amigos, parentes, colegas de trabalho –, e passam a concentrar os espaços e tempos individuais dentro de uma mesma planificação racional totalmente controlada, supostamente atendendo ao interesse da instituição total. Tal processo, nas palavras de GOFFMAN (2001, p.24), produz “estufas para mudar as pessoas: cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu”.
Castro estabelece diversas ressalvas à apropriação do conceito, dentre elas o fato de que não há – no caso estudado por ele, que é o da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), em 1987 – nítida separação entre as equipes dirigentes (no caso, os oficiais já formados) e os “internados” (cadetes que serão oficiais): todos vivenciam o mesmo ambiente e estão igualmente submetidos à formatação do tempo e do espaço.
Interessa-nos avançar, agora, às possibilidades de entendimento particular sobre a noção de espaço, sobre a relação entre o indivíduo e o meio no qual vive. Em BERQUE (2010a), podemos entender a mediania entre a localização física do corpo – que responde pelo topos – e o campo existencial do ser – que é a chôra:
“[a mediania] concretamente, constituída pelo nosso meio social(sendo a outra “metade” o nosso corpo individual), que como um sistema eco-tecno-simbólico, excede às limitações dos corpos individuais tanto no tempo como no espaço. Esse momento estrutural da existência humana funda a territorialidade humana”.Somos, portanto, nossos lugares, que nos constituem e constituíram, que carregamos conosco e projetamos nos novos ambientes que ocupamos. Porque estivemos em certos lugares (mais do que estivemos, porque fomos, porque existimos em certos lugares), somos lembrados neles, fazemos parte deles para outras pessoas. Da mesma forma, estes lugares, a experiência que vivemos neles, está em nós introjetada, não como lembrança – algo que, efetivamente, só está em nós e só a nós pertence – mas como uma relação estabelecida na qual a vivência realmente está nas coisas que nos cercam (BERQUE, 2010a).
Esta abordagem, tributária de uma linha de pensamento oriental não constituída nas dicotomias mente x corpo, homem x natureza, nos abre a possibilidade de estudar nossa consciência espacial (MARIA, 2010), nossa relação com o espaço em outras bases. A mediania apresentada acima corresponde a um tratamento entre o objetivo (considerando apenas o topos aristotélico, o espaço localizado totalmente fora de nós) e o subjetivo (considerando apenas a chôra platônica, a dimensão existencial), a que o autor denomina de trajetividade (3).
O tratamento dado ao espaço é particularmente fecundo para nosso estudo, porque salta aos olhos a busca, pelo Exército, em materializar a experiência da instituição, este ethos militar – o espírito militar estudado por CASTRO (1990) –, no entorno em que estão situadas as unidades militares e, particularmente, as escolas de formação. Não sendo oficialmente uma delas, mas – como a predominância original da finalidade preparatória, voltada à reprodução dos quadros, demonstrou – oficiosamente atendendo a esta função, os Colégios Militares estão impregnados dessa materialidade da história institucional, que é tatuada em dísticos nas paredes; que emerge do solo em bustos de vultos históricos; que denomina campos, pérgulas, salas de aula; que é exercitada em trajetos percorridos em datas específicas.
A não gratuidade da ocupação do terreno; certo estilo que se percebe nas organizações militares, que não se explica pela funcionalidade racional da distribuição do espaço; tudo isso remete ao desejo de carregar a instituição conosco, de habitá-la em sentido amplo.
E o corpo, especialmente – que nos interessa em particular para esta tese –, os símbolos, a história, não é apenas vestida, mas investida, e os militares se tornam partícipes, portadores, porta-vozes de uma experiência que é muito maior que cada um deles, individualmente (4). As fardas estão, o tempo todo, declarando a história, as regras, o código de honra; trazem o espaço, o terreno, seja nas cores como nos tecidos e texturas, não apenas na intenção do emprego funcional, mas porque estas características são repositórios da identidade, do ethos, do espírito militar (5).
Esta leitura do espaço pode derivar, ainda, para outra direção.
EUGENIO (2012) chama a atenção para a emergência de um tipo de subjetividade observado nos jovens por ela pesquisados que, quanto ao espaço, parece se
“desenhar em torno do não-lugar (AUGÉ, 1994) cada vez mais distribuída, virtualizada e desterrada, que, de maneira aparentemente contraditória, assim se operacionaliza antes pelo (re)situar-se incessante, por estar cada vez mais ‘cheia de lugar’, habitando não apenas os espaços, mas também as passagens” (EUGENIO In ALMEIDA e PAIS, 2012, p. 215).Assim é que os jovens observados parecem não ter abandonado seus espaços, mas os incorporado. Os processos de subjetivação parecem se ressituar em direção a um lococentrismo, ou seja,
“(...) o agente criativo contemporâneo emerge em relação com o entorno – o lugar, a máquina, o outro, a tecnologia – distribuindo-se em seus predicados, estes também sobressaindo em gradações variadas, a depender da posição da relação (no caso, do projeto ou trabalho em que se está envolvido no momento)” (idem, p.227-8).A abordagem não dicotômica de Berque nos possibilita, assim, pensar o espaço de modo relacional, seja no uso que dele faz a instituição militar, quando desdobra sua história, seus valores, sua identidade no terreno que ocupa e no próprio corpo de seus profissionais, nas fardas, adereços, em toda uma economia de gestos, postura, linguagem; seja no uso de certa parcela da juventude, que desterritorializa o espaço para carregá-lo consigo, adequando-o a uma funcionalidade contingente (6). Este processo da juventude, como propõe EUGENIO (2012), serve a uma criatividade situada, que não ocorre no sujeito, mas a partir de um desdobramento de conexões, de relações, “na própria ação de distribuir-se no mundo, espalhar-se nos espaços ocupados (...). Criar é algo que acontece no desinsularizar-se”.
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(1) Aretês eram as virtudes para os gregos. O ensino da mitologia, como na divulgação da Ilíada e da Odisseia de Homero, se prestava à afirmação de tipos ideais, como a figura de Ulisses (representando a sabedoria), de Aquiles (a coragem) e de Penélope (a fidelidade). Fazemos, aqui, um paralelo entre esse uso da História como divulgação de idealizações que interessam ao Estado e a prática institucional do Exército em cultuar seus vultos históricos e de materializá-los em heráldica.
(2) Sobre a “pedagogia do guerreiro”, ver: MAGALHÃES (2010).
(3) Este autor faz um uso particular de certas expressões, o que nos impõe explicitá-lo: a dimensão objetiva, física, do espaço, é tratada como ambiente (environnement); a dimensão subjetiva, fenomenal, é a paisagem (paysage); a relação que é, ao mesmo tempo, física (objetiva) e fenomenal (subjetiva) é o meio (millieu humain), também chamado de relação medial ou mesológica (MARIA, 2010, p.59).
(4) E a grande questão que daí emerge é, justamente, se os alunos aceitam – e, aceitando, como o fazem – essa mobilização do espaço em que vivem, do ecúmeno (BERQUE apud MARIA, 2010) a favor da instituição, ou se apropriam do espaço, não em sentido de oposição, mas de uma criatividade situada (EUGENIO, 2012) da qual trataremos mais à frente.
(5) Um rápido exemplo: as fardas camufladas seguem um padrão nacional que faz referência a certo tipo de vegetação encontrada no território brasileiro; entretanto, seu uso não é restrito às atividades em campanha, nas quais as cores favoreceriam o emprego militar. As fardas camufladas são utilizadas no perímetro urbano, em atividades administrativas e, mesmo em campanha, a diversidade da vegetação nacional não justifica o padrão único. Entendendo a farda como materialização do ethos militar, e dentro do millieu humain de Berque, entretanto, podemos perceber o padrão camuflado como o território brasileiro que o militar carrega em si próprio, identitariamente.
(6) “Ou seja, os diversos funcionamentos contemporâneos que desenham a tendência ampla a ocupar, a espalhar, reverter e transparecer que estamos acompanhando afetam não apenas os espaços mas os processos de subjetivação. Se os espaços tendem à transparência, a subjetividade tende à exteriorização e a operar por um constante exercício de explicitação; se os espaços tendem à reversibilidade e ao constante redesenho, a subjetividade faz-se também por operacionalização e conexão. Simultaneamente, um pensar e um fazer, a criatividade relacional e situada – que é um atravessamento comum nos processos de subjetivação dos diferentes agentes que encontramos – é uma operação de geração de clareza sobre o que se tem disponível (materiais, informações, técnicas e tecnologias, etc) de ‘desfragmentação’ e desatrelamento dos usos, funções e sentidos, e de reconexão, recombinação e rematerialização em novos acontecimentos ou produtos” (Idem, p.228-9).
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