É importante lembrar que, quando desse investimento em símbolos, dessa sistematização de valores em uma pedagogia, começava o processo de expansão dos Colégios Militares, rumo à constituição da rede que, hoje, conta com doze unidades e quase quinze mil alunos.
O CMRJ viveu, de 1889 a 1912, um ciclo de três fases que FIGUEIREDO e FONTES (1958) chamaram de “período crítico”: de 1889 a 1894 – expansão; 1894 a 1906 – ampliação; e 1906 a 1912 – reputação. Neste período, ainda que contrariando o discurso oficial que o justificava como assistencial, ou seja, voltado para o amparo à família militar, o CMRJ se estabeleceu como uma escola preparatória (CUNHA, 2006 e 2012) ocupando aquele espaço destinado, hoje, ao Ensino Médio. Foge ao escopo dessa tese contrapor as finalidades desse nível de ensino (preparatório x assistencial), porém vale lembrar que não se pensava, naquela época, em um nível médio com finalidade intrínseca, mas, apenas, como preparação para o ensino superior. O CMRJ preparava precipuamente, assim, para a Escola Militar e, nesse impedimento, para outros destinos superiores (1).
A finalidade preparatória sobrevive até os dias de hoje, não mais configurando os Colégios Militares como pré-vocacionais e como instrumentos de seleção de quadros para a renovação da caserna, mas como definição e síntese para uma identidade de excelência pautada na exclusão, ou seja, como uma elitização que afirma, ainda que subliminarmente, que os Colégios Militares são para poucos. Nos idos do fim do Império e da República Velha se estabeleceu um ethos de extrema exigência intelectual para o aluno dos Colégios Militares, o qual, em relação com toda a simbologia meritocrática que o Exército do século XX adotou – partindo do trabalho do Marechal José Pessoa –,justificou o caráter elitista dos Colégios, em contraposição a sua destinação primeira como escolas assistenciais.
Há que se enfatizar, sempre, a impossibilidade de concretização de uma proposta assistencial – nos termos em que ela é formulada, na educação dos dias de hoje – no contexto daquela época. O oposto possível ao ensino elitista que a meritocracia respaldava era o assistencialismo de que já tratamos nesta tese: não resgatar o aluno com dificuldades inerentes a sua situação de classe ou, na leitura específica que fazemos do caso militar, inerentes às vicissitudes da caserna; não resgatá-lo, mas escondê-lo, como aos órfãos, loucos, miseráveis, idosos, doentes. Assistencialismo como higienização da sociedade, como ordenamento pela ocultação (das vistas, do contato) e, in extremis, pela eliminação.
O discurso que tem origem nas palavras do regente Araújo Lima, em 1850, de se criar um colégio como medida de justiça aos que se sacrificavam a serviço da Pátria, passou a atender a finalidade de preparar – priorizando os filhos de militares, no que se sistematizou a endogamia tradicional da reprodução da caserna – os candidatos à Escola Militar. Aos olhos de hoje, essas duas destinações são, no mínimo, conflituosas: o amparo aos dependentes tem a ver com um direito de acesso à educação que só alcançou concretização efetiva, para toda a sociedade, no último quinto do século XX; a preparação, por outro lado, tem a ver como rigorosa seleção para o preenchimento de cargos públicos.
A meritocracia, enquanto naturalização do fracasso escolar, justificou a exclusão, como nos atestam os números: em 1912, contando com um total de novecentos discentes, o CMRJ só diplomou seis. No plano curricular, também é possível perceber o discurso preparatório sobrepondo-se ao argumento assistencial, como na lamentação do Major Professor Arivaldo Silveira Fontes quanto às reduções de conteúdo de matemática ocorridas entre o currículo inicial e o da década de 1950:
“Nota-se perfeitamente a intensidade do estudo da Geometria (9ª aula) abrangendo um número considerável de curvas. A conchóide, a cissóide, a ciclóide, a limaçom de Pascal não fazem parte do atual programa de Matemática. Revela nota, porém, que várias dessas curvas são hoje estudadas na cadeira de Desenho. Na Álgebra o currículo se estendia à resolução algébrica das equações de 3º e 4º graus (hoje abolidas do programa do curso secundário) e à resolução numérica das equações. Em contraposição não se fez referência ao Binômio de Newton (e sua generalização), à análise combinatória, à teoria dos determinantes (ressaltando as múltiplas aplicações), aos números complexos, ao estudo das funções dos limites, da continuidade. Vá lá que seja que os últimos assuntos citados foram levados para o Cálculo Infinitesimal e que este era estudado na Escola Militar” (FIGUEIREDO e FONTES, 1958, p.53).No regulamento de 1922, a rede constava de quatro unidades: o CMRJ; o CMPA (Porto Alegre, 1912) (2); o Colégio Militar de Barbacena (1912) (3), hoje Escola Preparatória de Cadetes do Ar (EPCAr); e o CMF (Fortaleza, 1019)59. Reforça o argumento quanto à sobreposição dafinalidade preparatória em relação à assistencial, o fato desses colégios transitarem de “colégios” a “escolas preparatórias” sem profundas alterações curriculares.
O ciclo expansionista seguinte ocorreu sob o desígnio do Marechal Lott, com as criações dos Colégios de Belo Horizonte (1955); de Salvador (1957); de Curitiba (1958) e do Recife (1959). A próxima expansão só se deu nos anos de 1970, com a criação de Colégios em Manaus (1971) e Brasília (1978), bem como da criação de um órgão de direção nacional, a Diretoria de Ensino Preparatório e Assistencial – DEPA (1973) (4). Nos anos de 1980 a rede sofre redução, pelo fechamento dos CMBH, CMR, CMC e CMS, fruto do conflito de finalidades: a função preparatória, como encaminhamento de dependentes à carreira das Armas perde eficácia, bem como não estava delineada, ainda, a função verdadeiramente assistencial.
O começo dessa definição – que vigora até os dias de hoje – aconteceu na gestão do General de Exército Zenildo Gonzaga Zoroastro de Lucena como Ministro do Exército, o qual reabre, em 1993, os Colégios que estavam fechados, bem como cria as unidades de Juiz de Fora, Campo Grande (1993) e Santa Maria (1994).
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(1) Nos primeiros vinte e dois anos de existência, o CMRJ formou 410 alunos, assim distribuídos: Exército – 166; Marinha – 105; Medicina – 42; Engenharia civil – 32; Direito – 31; Outras profissões – 34 (FIGUEIREDO e FONTES, 1958, p. 60)
(2) Tornou-se a Escola Preparatória de Porto Alegre em 1938, retornando como Colégio Militar em 1962.
(3) Extinto em 1925, reaberto como EPCAr em 1949.
(4) Passado ao Ministério da Educação e Saúde, com o nome de Colégio Floriano, em 1938, e ao estado do Ceará, em 1940. Retornou ao Exército como Escola Preparatória de Fortaleza, em 1942 (FIGUEIREDO e FONTES, 1958) e como Colégio Militar, em 1962.
(5) Hoje, Diretoria de Educação Preparatória e Assistencial.
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