Começamos este trabalho com uma descrição declaradamente tendenciosa, porque, na apresentação do aluno do Colégio Militar (primeiro ocultando esta situação-chave, depois a afirmando na mesma descrição) queríamos provocar o estranhamento, abrir a caixa-preta que é esta figura anônima. Porque a primeira condição para o obscurecimento de nosso personagem é sua subsunção nisso mesmo: ser um personagem, ou uma tradução que oculta, na pontualização, uma rede heterogênea que é – como não podia deixar de ser – totalmente particular.
O aluno do CMRJ pode ser normalizado como outros sujeitos assemelhados. Pode ser um aluno da rede pública de ensino; ou um adolescente carioca; ou um civil filho de militar. Em todas estas situações, ele não deixa de ser um vivente em relação com vários dispositivos que o sujeitam de diversas formas. Interessa-nos, para o fim da tese em desenvolvimento, este actante que participa da rede “Colégio Militar”, a qual só pode receber esta denominação – que sinaliza sua estabilização – porque as forças todas em jogo se encontram equilibradas dentro dela, pontualizando-a.
Reconhecendo, desde sempre, que a denominação “aluno” é uma facilitação didática que viabiliza a investigação, já que, rigorosamente falando, só existem “alunos” irredutíveis ao coletivo, porque sujeitados, um a um, em interação singular com todos os outros actantes; reconhecendo, enfim, esta necessidade da linguagem, a tese em andamento atentará para os uniformes e o gestual como instâncias privilegiadas dentro da rede.
A farda (como trataremos os uniformes escolares, aqui) não é, simplesmente, uma vestimenta. No caso do Exército, seu uso é totalmente regulado em instrumentos legais (EXÉRCITO BRASILEIRO, 1998), porque se entende que elas representam a instituição:
Art. 2º O uso correto dos uniformes é fator primordial na boa apresentação individual e coletiva do pessoal do Exército,contribuindo para o fortalecimento da disciplina e do bom conceito da Instituição perante a opinião pública (Exército Brasileiro, 1998).
Não que já não seja de conhecimento da sociologia o fato das roupas traduzirem identidades ou pertencimentos de classe; porém, no caso das Forças Armadas, pretende-se uma regulação que é única e uma representação que é exata, inclusive porque neste processo está implicada a saúde da corporação como instituição (...fortalecimento da disciplina e do bom conceito...)(1).
E como as Forças Armadas são redes de hierarquização explícita e fortemente normatizada, nas quais existe um compromisso formal de todos com todos (espírito de corpo), o cuidado com o fardamento extrapola a responsabilidade individual, abrangendo, em panóptico, a responsabilidade coletiva: Constitui obrigação de todo militar zelar por seus uniformes, pela correta apresentação de seus subordinados e dos que lhe são de menor hierarquia (EXÉRCITO BRASILEIRO, 1998, Art.3º).
E como as Forças Armadas são redes de hierarquização explícita e fortemente normatizada, nas quais existe um compromisso formal de todos com todos (espírito de corpo), o cuidado com o fardamento extrapola a responsabilidade individual, abrangendo, em panóptico, a responsabilidade coletiva: Constitui obrigação de todo militar zelar por seus uniformes, pela correta apresentação de seus subordinados e dos que lhe são de menor hierarquia (EXÉRCITO BRASILEIRO, 1998, Art.3º).
Conforme mencionado, o aluno do Colégio Militar não é, ele próprio, militar, mas está inserido na instituição e implicado, para a manutenção de sua condição de aluno, na obediência a diversos regulamentos, dentre os quais o R-124. Assim é que a aparência e o uso de seus uniformes diários é rigidamente regulada, não permitindo flexibilizações, personalizações, ou quaisquer mudanças.
O conjunto de suas cores e feitios; os diversos adereços; a maneira como interagem com o corpo remetem a uma história, a uma tradição. É desta maneira – dentre outras – que os militares podem reclamar seu pertencimento ao grupo: pela comunhão de tradições que, em contrapartida, apontam para um destino comum.
Entretanto, uma rápida observação sobre o dia-a-dia escolar permite ver grande polifonia na vestimenta, sugerindo apropriações particulares – portanto transgressoras – do que deveria servir, a princípio, como uniformizador do indivíduo.
As boinas garança, por exemplo: devem ser colocadas na cabeça em uma posição muito específica, apresentada com fotos no R-124, posição esta que é a mesma para todas as boinas adotadas pelo Exército e que tem a cor sanguínea não gratuitamente, mas em referência ao sangue derramado pelos combatentes brasileiros na Guerra do Paraguai, episódio da história do Brasil particularmente relevante para os Colégios Militares. Estas boinas, vemos pequenas para o tamanho das cabeças (e para o tamanho dos cabelos, que deveriam, seguindo o cânone militar, ser bem curtos), empoleiradas em equilíbrio impossível como “pizzas brotinho” mais atrás do crânio, deixando franjas igualmente iconoclastas à mostra.
As camisas: pelo regulamento são beges e enfiadas para dentro das calças, de tal forma que permaneçam esticadas no corpo, sem dobras sobrando para fora. Estas camisas, as vemos descuidadamente cobrindo os cintos (que deveriam estar sempre brilhando, a custa de polimento) e, muito frequentemente no caso das alunas, deixadas para fora da saia-calça em sua parte de trás, cobrindo parcialmente as nádegas.
Olhemos, agora, para o gestual militar. Ele serve à distinção do grupo e, neste sentido, mais ao reconhecimento dos militares frente ao público externo (frente aos que não são militares) do que à identificação interna, ou seja, frente aos que são militares. A este público, o gestual serve à fixação da hierarquia, na medida em que reafirma as relações de subordinação (2).
A continência, por exemplo, é definida em regulamento (EXÉRCITO BRASILEIRO, 1997), o qual, como acontece com o fardamento, serve à precisão de sua finalidade, oportunidade e maneira de execução. São muito esclarecedores os artigos 2º e 3º:
Art. 2º Todo militar, em decorrência de sua condição, obrigações, deveres, direitos e prerrogativas, estabelecidos em toda a legislação militar, deve tratar sempre:
I - com respeito e consideração os seus superiores hierárquicos, como tributo à autoridade de que se acham investidos por lei;
II - com afeição e camaradagem os seus pares;
III- com bondade, dignidade e urbanidade os seus subordinados.
§ 1º Todas as formas de saudação militar, os sinais de respeito e a correção de atitudes caracterizam, em todas as circunstâncias de tempo e lugar, o espírito de disciplina e de apreço existentes entre os integrantes das Forças Armadas.
§ 2º As demonstrações de respeito, cordialidade e consideração, devidas entre os membros das Forças Armadas, também o são aos integrantes das Policias Militares, dos Corpos de Bombeiros Militares e aos Militares das Nações Estrangeiras.
Art. 3º O militar manifesta respeito e apreço aos seus superiores, pares e subordinados:
I - pela continência;
II - dirigindo-se a eles ou atendendo-os, de modo disciplinado;
III - observando a precedência hierárquica;
IV - por outras demonstrações de deferência.
§ 1º Os sinais regulamentares de respeito e de apreço entre os militares constituem reflexos adquiridos mediante cuidadosa instrução e continuada exigência.
§ 2º A espontaneidade e a correção dos sinais de respeito são índices seguros do grau de disciplina das corporações militares e da educação moral e profissional dos seus componentes.
§ 3º Os sinais de respeito e apreço são obrigatórios em todas as situações, inclusive nos exercícios no terreno e em campanha.
Podemos entender, então, que a continência, incluída como um sinal de respeito e apreço (item I do Art. 3º), deve ser usada sempre (caput do Art. 2º e § 3º do item IV do Art. 3º); caracterizando o espírito de disciplina e de apreço (§ 1º do Art. 2º), e que sua introjeção no militar é fruto de ensino, prática e fiscalização (§ 1º do item IV do Art. 3º).
À semelhança do que acontece em sua relação com o fardamento, o aluno dos Colégios Militar mimetiza o profissional da caserna quanto à obediência ao gestual militar, mesmo não pertencendo aos quadros da Força Armada (3), e, como também pode ser observado com os uniformes, subverte a normatização do uso desse gestual, seja omitindo a continência em situações nas quais a mesma é obrigatória, seja personalizando-a, seja incluindo, como um gestual particular de uso horizontalizado (entre eles, alunos, “seus pares”) outros sinais de reconhecimento.
O que a pesquisa etnográfica aqui apresentada se propõe, fazendo este recorte dos uniformes e do gestual no cômputo maior de características dos militares presentes no cotidiano escolar dos Colégios Militares (4), é, tratando como profanações (AGAMBEN, 2007 e 2009) o uso tomado à norma, à história e à tradição, compreender o aluno contemporâneo do CMRJ como actante nesta rede de elementos heterogêneos que se chama Colégio Militar.
Se o uso específico desses dispositivos não atende mais à determinação de um sujeito, que outro sujeito está sendo constituído nesse processo? Se existe esse novo assujeitamento, ele contém a positividade de reabilitar uma “política”, ou não?
No ponto em que agora chegamos do desdobramento desta investigação, se faz necessário recuperar um pouco da história dos Colégios Militares, buscando muito menos o relato canônico dos fatos como foram cooptados pela instituição, e menos, também, certas interpretações totalizantes da história dos Colégios Militares como inseridos na instituição que os acolhe; interessa-nos recuperar a história para que ela nos conte dos interstícios com a educação pública civil, nos conte da invenção das tradições (RANGER; HOBSBAWM, 2012) que já nasceram antiquíssimas, e nos conte, enfim – com toda a limitação de tempo e espaço – desse jogo negociado ponto a ponto entre Exército e alunos, instituído e instituinte, sujeitos e dispositivos.
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(1) Ou ainda: O zelo e o capricho do militar com as peças do uniforme são uma demonstração de respeito e amor à farda que veste e, mais do que isto, externam o seu ânimo profissional e o seu entusiasmo com a carreira das armas, sendo importante observar a limpeza, a manutenção do brilho nos metais, o polimento dos calçados e a apresentação dos vincos verticais nas peças de fardamento, como é sugerido nas figuras deste Regulamento (EXÉRCITO BRASILEIRO, 1998, Parágrafo único do Art. 3º).
(2) Sobre as particularidades do gestual militar, é indispensável ler sobre as técnicas do corpo (MAUSS, 2003) em conjunto às considerações de CASTRO (1990) e LEIRNER (1997).
(3) Referimo-nos a título de exemplo, neste trabalho, a continência, porém o universo do gestual militar a ser tratado na pesquisa em questão incluirá, também, a ordem unida, no que esta é solicitada aos alunos, junto com os uniformes e os sinais de respeito, segundo sua regulamentação específica (EXÉRCITO BRASILEIRO, 2000).
(4) A pesquisa se propõe, efetivamente, a um recorte em um universo bem maior de possibilidades: deixaremos de fora, por exemplo, o campo das cerimônias, igualmente representativas e reguladas, bem como o campo dos hinos e canções.
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