APRESENTAÇÃO
Os Colégios Militares são estabelecimentos de ensino sui generis. Seja porque pertencem ao Exército Brasileiro e oferecem educação básica; seja porque, identificados muitas vezes como quartéis, exercem sua função educativa com crianças e adolescentes civis; seja porque ocupam o espaço fronteiriço entre as identidades da instituição militar e a pluralidade civil; seja porque insistem na monoglosia dos uniformes, dos gestos, dos comportamentos.
Interessantes já pelos aspectos acima, os Colégios Militares ainda são atraentes ao pesquisador como uma antessala para o ensino militar maior, com sua estreita ligação com a educação pública desde o século XIX, com o pensamento das Forças Armadas e sua íntima relação com a história brasileira deste mesmo período.
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Colégio Militar do Rio de Janeiro (CMRJ) |
A tese em construção, aqui apresentada, efetua dois recortes. No âmbito das possibilidades de investigação de um objeto tão rico, separa as vestes e os gestos dos alunos como foco para conhecer o discente contemporâneo dos Colégios Militares. No âmbito do local da pesquisa, se centra no Colégio Militar do Rio de Janeiro (CMRJ), mais antigo dos doze educandários e que, entendemos, é o polo irradiador dessa identidade comum (1).
Porque as instituições militares tratam suas fardas (os uniformes, as vestes), bem como seus rígidos códigos comportamentais, como componentes indissociáveis de sua identidade. Ainda que o discurso uníssono das escolas de formação insista na constância do ser militar, ou seja, que não se é militar em certos momentos, dentro de expedientes ou locais de trabalho, mas diuturnamente – no que a profissão se aproxima de um sacerdócio e a caserna se torna uma instituição total (GOFFMAN, 2001) –, sabemos que existe uma composição do militar, um conjunto característico de fatores pelos quais ele se identifica, principalmente, frente aos que não o são. Os alunos dos Colégios Militares não são militares: são civis dependentes legais destes, ou civis selecionados por concurso; nunca é demais repetir, principalmente porque a (tentativa de) imersão dos mesmos nesta coleção de itens identitários parece propor uma conclusão diferente, que eles sejam, sim, de alguma forma, pertencentes a este grupo tão peculiar (logo mais a frente experimentaremos o estranhamento causado por esta conclusão indevida, quando confrontada com a realidade cotidiana dos alunos dos Colégios Militares).
Ainda sobre o âmbito das possibilidades de investigação, cabe lembrar que, em uma primeira aproximação, cogitamos contemplar, além das vestes e dos gestos, a dimensão das cerimônias. Nesta direção, iriamos desdobrar os diversos ritos cultivados pelo Exército e que são transpostos ao universo escolar. Frente à necessidade de reduzir para viabilizar a pesquisa, optamos pelas dimensões das vestes e dos gestos.
A pesquisa em curso baseia-se, como referencial teórico, principalmente nos conceitos de dispositivo e de profanação, para AGAMBEN (2005, 2007) e lança mão da antropologia simétrica e da teoria do ator-rede(ANT) como desenvolvida por LATOUR (1994, 2012) e outros autores. Considerando o processo de subjetivação que se dá na interação, não só do aluno com a instituição “Colégio Militar”, ou com o Exército Brasileiro, mas com todos os actantes (LATOUR, 2012) entendidos como dispositivos, a pesquisa buscará compreender as redes que passam pelo uso dos uniformes e do gestual militar, procurando entender as ressignificações – profanações – dos mesmos pelos discentes. A investigação reconhece como importante, ainda que periférica em relação ao objetivo principal, a ambientação com as histórias da educação brasileira e da formação militar no Brasil, bem como quanto à história particular do CRMJ, entendendo que a abertura da “caixa-preta” (LATOUR, 2000) (2) deste Colégio depende do rastreamento de sua história.
Por último – mas não menos importante – cabe observar que a tese em curso está sendo conduzida por um “nativo”. Sendo militar e, neste universo, ocupando posição como oficial formado dentro da mesma estrutura na qual se situam os Colégios Militares, experimento vantagens e desvantagens, por
assim, dizer, causadas pela posição algo ambígua do observador. Como nativo, tenho acesso a especificidades da complexa carreira das Armas que os sociólogos civis não costumam considerar. Ao mesmo tempo, me mantenho mais atento que o de costume com relação ao risco da perda do distanciamento, esta objetividade mítica e idealizada que ainda aquilata nossa produção acadêmica.
assim, dizer, causadas pela posição algo ambígua do observador. Como nativo, tenho acesso a especificidades da complexa carreira das Armas que os sociólogos civis não costumam considerar. Ao mesmo tempo, me mantenho mais atento que o de costume com relação ao risco da perda do distanciamento, esta objetividade mítica e idealizada que ainda aquilata nossa produção acadêmica.
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(1) O CMRJ (1898) é o mais antigo membro da rede de educação básica mantida pelo Exército, denominada de “ensino preparatório e assistencial”, cujos demais membros são: CMPA (Porto Alegre-RS,1912), CMF (Fortaleza-CE, 1919), CMBH (Belo Horizonte-MG, 1955), CMS (Salvador-BA, 1957), CMC (Curitiba-PA, 1958), CMR (Recife-PE, 1958), CMM (Manaus-AM, 1971), CMB (Brasília-DF, 1978), CMJF (Juiz de Fora-MG, 1993), CMCG (Campo Grande-MS, 1993) e CMSM (Santa Maria-RS, 1994). A denominação “preparatório e assistencial” se refere as duas finalidades que justificam a existência do sistema de ensino: como “preparatório”, o encaminhamento original à carreira das Armas, que se flexibilizou ao longo do tempo de modo a incluir todos os prosseguimentos de estudos, principalmente para o nível superior civil. E “assistencial”, como a compensação não pecuniária à família militar, na forma de acesso a um ensino barato e de boa qualidade que equalize os prejuízos inerentes à vida militar (seguidas transferências de localidade, menor disponibilidade de atenção do pai para os filhos, obstáculo à profissão da esposa, etc).
(2) “A expressão caixa-preta é usada em cibernética sempre que uma máquina ou um conjunto de comandos se revela complexo demais. Em seu lugar, é desenhada uma caixinha preta, a respeito da qual não é preciso saber nada, senão o que nela entra e o que dela sai. (...) Ou seja, por mais controvertida que seja sua história, por mais complexo que seja seu funcionamento interno, por maior que seja a rede comercial ou acadêmica para a sua implementação, a única coisa que conta é o que se põe nela e o que dela se tira” (LATOUR, 2000, p.14).
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