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sábado, 1 de fevereiro de 2014

Capítulo 1: Fundamentação teórica (2ª parte)

PRELIMINARES PARA UMA PESQUISA: O CORTE E O FUNDO

O CMRJ (1889) ombreia com outras escolas tradicionais cariocas, como o Colégio Pedro II (1837) e o Instituto de Educação (1930) (1). Ainda que as histórias desses três estabelecimentos de ensino se entrecruzem, nos interessa investigar, de um rol maior de escolas centenárias, as particularidades deste colégio de educação básica que se desenvolveu em simbiose com a instituição das Armas.

Havendo o interesse pela pesquisa etnográfica, sentimos necessidade de definir dois componentes, sendo um deles o corte que atravessará a investigação, o marco conceitual pelo qual o trabalho poderá ser distinguido, mais a frente. E há que se ter cuidado ao se tratar de um corte, para que ele não se confunda com alguma afirmação a priori levada à investigação e que contamina, de início, a possibilidade de rastreamento. Reconhecemos, de pronto, que não é intenção da etnografia conhecer enquanto confirmação da teoria, no que replicaria a abordagem tradicional. Mas isso não nos dispensa a definição de um viés inicial, uma linha-guia para a aproximação. É este “tom” que chamaremos de corte, não como alguma coisa que delimita ou emoldura, definindo um fora e um dentro, mas como a ação de percorrer, de atravessar, de forma específica, por dentro do real: como a quilha do navio corta as ondas, como a cunha do arado sulca a terra.

Nosso corte se valerá do conceito de profanação, como formulado por AGAMBEN (2007, 2009). Para entendê-lo, partiremos de uma breve genealogia do conceito de dispositivo, que é reformulado por Agamben partindo da conceituação proposta por Foucault.

REVEL (2005) localiza uma primeira referência incipiente do que viria ser o dispositivo, no pequeno prefácio de Foucault para a edição americana de “O Anti-Édipo” de Deleuze e Guattari (1972). Nele, afirma que
“A melhor maneira, creio eu, de ler o Anti-Édipo é abordando-o como uma arte,no sentido em que se fala da ‘arte erótica’, por exemplo. Apoiando-se sobre noções aparentemente abstratas de multiplicidades, de fluxos, de dispositivos e de alternativas, a análise da relação do desejo com a realidade e com a ‘máquina’ capitalista traz respostas a questões concretas”.
No mesmo prefácio, centrado no combate a uma “vida fascista”, Foucault irá esboçar objetivos de resistência – que, hoje, poderíamos relacionar com a oposição aos dispositivos – como o transcrito a seguir:
“O que é preciso é ‘desindividualizar’ pela multiplicação e pelo deslocamento, pelo agenciamento de combinações diferentes. O grupo não deve ser o elo orgânico que une indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de ‘desindividualização’”.
Em “Microfísica do poder”, este autor define dispositivo como:
(...) um conjunto absolutamente heterogêneo que implica discursos, instituições, estruturas arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas, em resumo: tanto o dito como o não dito, eis o dispositivo. O dispositivo é a rede que se estabelece entre esses elementos ...” (FOUCAULT, 2007, p.138).
E a natureza da relação entre os elementos heterogêneos como:
“(...) programa de uma instituição, ou, ao contrário, como elemento que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda; pode ainda funcionar como reinterpretação desta prática, dando-lhe acesso a um novo campo de racionalidade. Em suma, entre esses elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudança de posição, modificações de funções, que também podem ser muito diferentes” (FOUCAULT, 2007, p. 138).
E ainda:
“(...) entendo dispositivo como um tipo de formação que, em um determinado tempo histórico, teve como função principal responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma estratégia dominante. Este foi o caso, por exemplo, da absorção de uma massa de população flutuante que uma economia de tipo essencialmente mercantilista achava incômoda: existe aí um imperativo estratégico funcionando como matriz de um dispositivo, que pouco a pouco tornou-se o dispositivo de contra-dominação da loucura, da doença mental, da neurose” (FOUCAULT, 2007. p. 138-139).
O dispositivo, para Foucault – como conjunto absolutamente heterogêneo –, é um passo adiante da episteme, a qual é um dispositivo essencialmente discursivo; representa enunciados de vários tipos, como os dos filósofos, dos cientistas, mas sempre discursos – o dito. Nesse passo adiante, o autor caminha para além da linguagem – o não dito.

Qualquer dispositivo, então, atenderá a uma natureza estratégica, a uma manipulação de relações de forças, ou seja, promoverá uma intervenção, um direcionamento, quer bloqueando, estabilizando, ou utilizando as forças. E, neste intuito, é irrelevante observar se a atuação se dá pelo campo discursivo ou não:
“Entre o programa arquitetural da Escola Militar feito por Gabriel e a própria construção da Escola Militar, o que é discursivo, o que é institucional? Isso só me interessará se o edifício não estiver conforme o programa. Mas não creio que seja muito importante fazer esta distinção, a partir do momento em que o meu problema não é linguístico” (FOUCAULT, 2007, p. 141).
Pausando, por hora, este entendimento, cabe lembrar o que Foucault chama de sobredeterminação funcional e de preenchimento estratégico. Sendo os dispositivos estratégias que manipulam relações de forças, elas ocasionam, como “efeitos-colaterais”, outras modificações não previstas, outras configurações que rearticulam os elementos heterogêneos; a isto o autor chama de sobredeterminação funcional. Por outro lado, este efeito-colateral precisa ser reaproveitado dentro da sociedade, e esta ocupação do que sobrou do dispositivo é chamada de preenchimento estratégico.

O exemplo que nos é dado é o que acontece com o aprisionamento. Se ele foi o dispositivo destinado a fazer crer que as medidas de detenção, em determinado momento, eram o instrumento mais eficaz e racional de combate à criminalidade, produziu, como efeito-colateral (sobredeterminação funcional), a constituição de um meio delinquente filtrado, isolado, concentrado e profissionalizado pela prisão. E este efeito involuntário e negativo é reabsorvido, mais ou menos por volta de 1830, com a organização da prostituição (preenchimento estratégico).

Estes dois conceitos serão importantes, mais a frente, para pensarmos as resistências e possibilidades de oposição aos dispositivos. Como observa VEYNE (2011, p.170): “o dispositivo é menos um limite imposto à iniciativa dos sujeitos do que o obstáculo contra o qual ela se manifesta” (2).

Vamos nos afastar um pouco de Foucault e nos aproximar de Agamben. Traçando a genealogia do conceito, este autor retorna a Hegel por meio de Jean Hyppolite (apud AGAMBEN, 2009, p.31) para concluir que – inicialmente chamado de positividade – o dispositivo foucaultiano é, também, este elemento histórico que se impõe sobre os homens, como conjunto de instituições, de processos de subjetivação e de regras em que se concretizam as relações de poder (3).

Chegamos a uma nova formulação, tributária dessa linhagem que parte de Hegel (positividade) para Foucault:
“[dispositivo é] o conjunto de práticas e mecanismos (ao mesmo tempo linguísticos e não-linguísticos, jurídicos, técnicos e militares)que têm o objetivo de fazer frente a uma urgência e de obter um efeito mais ou menos imediato” (AGAMBEN, 2009, p.35).
Entretanto, esta não é a única trilha de formulação do conceito; o autor vai buscar outra, na teologia, com o termo grego oikonomia.

Para instituir, no segundo século, o dogma da santíssima trindade (o Pai, o Filho e o Espírito Santo), a igreja cristã teve de solucionar o conflito com aqueles fiéis temerosos do paganismo, que viam na trindade uma perigosa remessa à multiplicidade de deuses. Como o Deus único poderia ser três? A solução dada lançou mão do termo oikonomia, como “gestão da casa”. Assim Deus, que é único, se utiliza do Filho e do Espírito Santo para administrar o mundo. Desta forma, o termo se especializa como uma práxis, como um fazer terreno de Deus sobre a terra.

Em latim, a expressão equivalente é dispositio. Este passa a ser, em seu caminho de laicização,
(...) aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura atividade de governo sem nenhum fundamento no ser. Por isso os dispositivos devem sempre implicar um processo de subjetivação, isto é, devem produzir o seu sujeito (AGAMBEN, 2009, p. 38).
O termo latino dispositio (a oikonomia dos gregos) recolhido à teologia mostra, assim, sua integração com a corrente que estamos seguindo, a qual aflui com Foucault: o dispositivo como conjunto de práxis, de saberes, de medidas, de instituições cujo objetivo é gerir, governar, controlar e orientar, num sentido que se supõe útil, os gestos e os pensamentos dos homens (AGAMBEN, 2009, p. 39).

É neste ponto de desenvolvimento de seu argumento que o autor abandona os caminhos já traçados que vinha perseguindo e se aventura por uma trilha inédita. Para além da positividade hegel-foucaultiana e da oikonomia/dispositio cristã, propõe uma divisão radical de tudo em dois grupos: de um lado, os viventes; do outro, os dispositivos. De um lado, a ontologia das criaturas; do outro, a gestão das substâncias.

Se, para Foucault, os dispositivos foram pensados restritos ao campo já amplo das prisões, das escolas, dos manicômios, das confissões, Agamben nos propõe estender o alcance para qualquer coisa que tenha a capacidade, de algum modo, de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes (4).

Podemos pensar, assim, numa nova trindade: de um lado, os viventes (as substâncias); do outro, os dispositivos; e entre eles, os sujeitos, como resultantes, sempre, das relações estabelecidas entre viventes e dispositivos. Pensar os sujeitos em distinção às suas substâncias não é uma heresia. Temos de entender que diversos sujeitos transitam na mesma substância, alternando processos de subjetivação: o sujeito que usa o celular, por exemplo, é um vivente em relação a um dispositivo (o celular) que lhe impõe um gestual, uma delimitação, certos procedimentos. O mesmo vivente em sua casa, despido de suas obrigações e desarmado de seu celular, ao sentar-se frente à televisão incorpora outro sujeito, porque em relação com outro dispositivo (5).

Agamben constata a complexidade peculiar ao nosso tempo, em que tudo são dispositivos. É que, no entendimento de Foucault, os processos de subjetivação promovidos pelos dispositivos atendiam claramente ao governo dos homens. No caso da confissão, por exemplo, o sujeito se definia pela negação do pecado, emergia livre no ato confessional porque se opunha a alguma coisa deixada fora de si pela ação do dispositivo. Da mesma forma, a escola exercia seu poder de socialização estabelecendo uma fronteira entre o escolarizado e o não-escolarizado, sendo sujeito o primeiro, em oposição ao segundo. Ainda como exemplo, o dispositivo prisional conseguia definir um sujeito porque o contrapunha ao não-sujeito do delinquente.

Já na acepção mais ampla defendida por Agamben, não ocorre, realmente, uma subjetivação pela intervenção do dispositivo sobre o vivente, mas algo que parece, a este autor, como uma dessubjetivação. O “corpo dócil” que Foucault entendia como sujeito na sociedade disciplinar, que fora sujeitado pelo dispositivo, mas encontrava alguma afirmação em seu assujeitamento, não encontra nada semelhante em sua constituição pelos dispositivos contemporâneos (6).

O cenário distópico que se apresenta é o do eclipse da política – entendida como arena de sujeitos e identidades reais (o movimento operário, a burguesia, etc.) – e de predomínio de certa oikonomia negativa, como gestão do poder em automático, por sua pura e simples reprodução:
Direita e esquerda, que se alternam hoje na gestão do poder, têm por isso bem pouco o que fazer com o contexto político no qual os termos provêm e nomeiam simplesmente os dois polos – aquele que aposta sem escrúpulos na dessubjetivação e aquele que gostaria, ao contrário, de recobri-la com a máscara hipócrita do bom cidadão democrático – da mesma máquina governamental (AGAMBEN, 2009, p. 49).
De posse dessa conceituação mais ampla, avançaremos para o conceito de profanação.

Lançando mão, novamente, da religião cristã (e do direito romano, como atividade intimamente conexa), Agamben recupera o movimento de consagração ou sacralização, como sendo aquele que subtrai o uso de certas coisas pelos homens, restringindo-as a Deus (ou aos deuses), e o correlato movimento contrário de profanação, como sendo o de devolução ao mundo dos homens, de liberação do uso de certas coisas antes consagradas ou sacralizadas. Ainda que em paradoxo com seu significado mais comum (7), a religião (religare) sempre impõe uma separação de algo em favor do sagrado, sempre delimita um campo que não é mais dos homens, porque restrito a Deus (religere).

Como instrumento da profanação, o autor examina o jogo. Se o que dá potência ao sagrado é a conjunção entre um mito (como narrativa original) e um rito (que reproduz a narrativa, atualizando-a e pondo-a em cena), o jogo é o que quebra essa unidade, seja anulando o mito (como ludus) e mantendo o rito, seja, ao contrário, anulando o rito (como jocus) e mantendo o mito. Em ambos os casos, o que se processa é a perda de potência que devolve a atividade ao seu uso mundano.

Agamben também observa a forte presença do movimento contrário no mundo de hoje: a proliferação de jogos que não querem dessacralizar nada, que não rompem com mitos e ritos, mas são saudosismos de liturgias esquecidas, de graças obnubiladas. Em um mundo desencantado, a demanda pelo eterno se faz presente também pelo jogo. É frente esta dicotomia (jogo que profana, jogo que consagra) que o autor recupera a distinção entre secularização e profanação. No primeiro caso, traz-se uma estrutura que era sacra para o domínio terreno, sem desmontar sua relação de forças. É o caso da monarquia que, mesmo quando perde seu teor divino, se mantém como relação de poder entre os homens. No segundo caso, ocorre a neutralização da estrutura, que é o que devolve a atividade ao uso laico.

Ambos os movimentos – de sacralização e de profanação – são muito íntimos e guardam, entre si, grande ambiguidade: o que foi profanado não perde totalmente sua composição divina, e o que foi consagrado não deixa de ser, em alguma medida, ainda humano (8).

Já temos elementos suficientes para fazer a aproximação que nos interessa. Ao propormos a profanação como parte do corte – segundo a metáfora da lâmina que percorre um conteúdo, dando a forma –, pretendemos olhar para este aluno contemporâneo do CMRJ que, em sua vivência como estudante de uma tradicional escola mantida pelo Exército, ressignifica os dispositivos que o deveriam sujeitar como aluno. E nos interessa, também, examinar esta transformação pela qual os dispositivos foram sendo profanados, inclusive de dentro da própria instituição responsável por sua preservação.

Porque a normatização precisa dos usos ainda existe – de vestes, de gestos, de falas –, no que podemos pensar naquela remoção do uso comum rumo a um contexto privilegiado (sacralização ou consagração, ainda que laica), mas, o tempo todo, seu uso efetivo – o modo como os alunos se vestem, se portam ou falam – deixa perceber releituras profanas, esvaziamentos que devolvem a prática ao prosaico (“contradispositivos”).

E interessa-nos investigar, também, como mesmo a instituição – que deveria guardar pedagogicamente os usos – não exerce essa autoridade do padre e do pastor, do religioso que é o guardião da liturgia: todos participam das releituras, das ressignificações, do jogo que mundaniza o que fora consagrado.

Podemos pensar nos uniformes, nos gestos, na linguagem, todos selecionados pela Força Armada para criar um sujeito específico a partir daquele vivente original. Porém hoje, após uma rápida observação do cotidiano escolar, percebemos usos distintos das boinas (personalizadas, “customizadas” – ainda que com certa discrição), das camisas dos uniformes, dos culotes das alunas da arma de Cavalaria; percebemos usos distintos dos gestos restritos aos militares – que os alunos não são –, como é o caso da continência, da postura corporal na Ordem Unida; percebemos usos distintos da linguagem castrense, de seu vocabulário, de suas músicas (hinos e canções).

O que emerge desse novo processo de subjetivação? O sujeito ausente que Agamben lamenta em um mundo de dispositivos que separam sem consagrar? (9) Ou uma possibilidade inédita e contemporânea de reapropriação?

Se definimos, até aqui, um componente necessário a investigação, o seu marco conceitual que metaforizamos como corte, resta definir o outro componente, que trataremos como fundo.

Fundo no sentido mesmo do procedimento etnográfico, da maneira como a investigação ocupará o tempo e o espaço. Pano de fundo: uma qualidade da etnografia, sua distinção metodológica. Com este entendimento, escolhemos a abordagem da teoria do ator-rede segundo a antropologia simétrica, conforme formulada por LATOUR (1994, 2008).

Em seu livro “Nunca fomos modernos”, LATOUR (1994) começa definindo como híbridas todas as coisas, refutando, assim, a divisão entre “homem” (cultura) e “natureza” que instituiu a Modernidade. Segundo ele, a separação cartesiana proporcionou uma falsa objetividade, por meio da qual o homem pensou chegar às “coisas em si”. Tanto na naturalização, quanto na socialização ou na desconstrução, são estabelecidas críticas incompletas e parciais da realidade, e isso porque esta não é redutível aos fatos, ao poder ou ao discurso (10). A realidade atravessa todas as dimensões e deve ser tratada se reconhecendo, a priori, seu hibridismo.

A modernidade pretendeu uma disjunção que nunca deixou de ser apenas aparente, ainda que funcional por certo período. LATOUR (1994) nos fala de tradução, como a constante criação desses híbridos entre os campos supostamente isolados; e de purificação, como a separação, em duas zonas ontológicas distintas, do mundo dos humanos e dos não-humanos. É a partir, principalmente, do trabalho de antropólogos como VIVEIROS de CASTRO (2011), que podemos visualizar sociedades não dicotômicas quanto à relação homem-cultura, sociedades que integram os processos de tradução e de purificação em um continuum. Ainda em LATOUR (1994):
Este é todo o paradoxo moderno: se levamos em consideração oshíbridos, estamos diante de mistos de natureza e cultura; se consideramos o trabalho de purificação, estamos diante de uma separação total entre natureza e cultura. É a relação entre os dois processos que eu gostaria de compreender” (p.35).
O argumento de Latour é o de reconhecimento do caráter artificial da separação que funda a modernidade, ao ponto de afirmar que nunca conseguimos assumi-lo integralmente. É esta não assunção que possibilita sua afirmação (“nunca fomos modernos”) e conseqüente proposta de um plano de trabalho: a antropologia simétrica (11).

A antropologia simétrica propõe reestabelecer a equidistância entre o braço “coisas” (ciência, técnica) e o braço “homens”. Clarificando: a instituição da modernidade, ao mesmo tempo em que afirma a transcendência da natureza, colocando-a distinta da imanência da sociedade (fabricada pelo homem) possibilita o seu contrário, que é a natureza ser fabricada pelo homem (tornada imanente) e a sociedade ser posta fora de nosso alcance (tornada transcendente via o envolvimento cada vez mais frequente de não-humanos). Este paradoxo é articulado por uma terceira solução, que junta as duas pontas contraditórias: “ainda que passível de mobilização e construção, a natureza continuará não tendo qualquer relação com a sociedade, a qual, ainda que transcendente e mantida pelas coisas, não terá mais uma relação com a natureza” (LATOUR, 1994, p. 137). Se este acerto, que é o da modernidade, expulsa os quase-objetos e torna as redes de tradução clandestinas, é necessário um pensamento articulador, que é expressado em novas garantias. A primeira, de não-separabilidade entre quase-objetos e quase-sujeitos:
Qualquer conceito, instituição ou prática que atrapalhar ao desdobramento contínuo dos coletivos e sua experimentação de híbridos será tachado como perigoso, nefasto e imoral. O trabalho de mediação torna-se o próprio centro do duplo poder natural e social. As redes saem da clandestinidade. O império do centro está representado (LATOUR, 1994, p. 138).
A segunda garantia, de acompanhamento contínuo da colocação em natureza, objetiva, e da colocação em sociedade, livre:
Todos os conceitos, todas as instituições, todas as práticas que vierem a atrapalhar a objetivação progressiva da natureza – a colocação em caixa-preta – e simultaneamente a subjetivação da sociedade – a liberdade de manobra – serão vistas como nefastas, perigosas e, resumindo, imorais (LATOUR, 1994, p. 138).
 A terceira garantia, de redefinição da liberdade como capacidade de triagem das combinações hibridas que não depende mais do fluxo temporal homogêneo:
A liberdade não se encontra mais apenas no polo social, ela ocupa também o meio e a parte de baixo, tornou-se capacidade de diferenciação e de recombinação das confusões sociotécnicas (LATOUR, 1994, p. 139).
 E a quarta garantia – talvez a mais importante –, é a de substituir a louca proliferação de híbridos por uma produção consensual e regulamentada dos mesmos:
Talvez seja chegada a hora de voltar a falar em democracia, mas de uma democracia estendida às coisas em si. Não podemos cair de novo no golpe de Arquimedes (LATOUR, 1994, p. 140).
Toda postulação da antropologia simétrica prepara o terreno para uma abordagem metodológica, que é o que nos interessa mais de perto para a constituição desse “fundo” que mencionamos, chamada de teoria do ator-rede (ANT) (12).

A ANT propõe o social como uma rede heterogênea. Rede, não no sentido estático e objetivado com que compreendemos a palavra, em comum; mas, principalmente, como efeitos de rede, ou seja, como interações que acontecem e produzem o social.

Vamos partir desta unidade mais simples, que é a interação. Assumamos que interação é tudo o que há (LAW, 2012). Estendamos a interação de modo a incluir, também, os não-humanos (objetos, normas, etc). Estas interações são instáveis, mais ou menos fugazes, e produzem uma impressão de solidez e de consistência que oculta o fato de serem relações de poder geradoras do social.

Falamos de não-humanos e é necessário nos determos sobre esta peça fundamental postulada por LATOUR (et al.). Em sua Terceira fonte de incerteza: os objetos também agem (2012, p.97 a 128), o autor começa polemizando entre o reconhecimento feito pela sociologia do social de que a sociedade é, sim, profundamente desigual e assimétrica, e suas afirmações anteriores, de que “não existem grupos, só formação de grupos” (13) e de que “a ação é assumida” (14), que, aparentemente, contestam essa certeza basilar. Se assim fosse – diz ele –, a ANT não seria mais do que um dos sintomas desse espírito de mercado sempre pronto a assegurar que todos têm a mesma oportunidade; ele, inclusive, cita autores que apoiam suas críticas à ANT nesta argumentação. Na defesa de sua posição Latour coloca que, justamente para explicar as diferenças e assimetrias é que é necessário não tomá-las como um a priori, mas como um resultado final de um processo. Na busca dos geradores desse processo, deve-se extrapolar o campo antes delimitado pela sociologia do social e considerar outros tipos de atores que não os sociais:
“Em princípio, você poderia percorrer um supermercado imaginário e estacar diante de uma gôndola cheia de ‘vínculos sociais’, com outras alas exibindo conexões ‘materiais’, ‘biológicas’, ‘psicológicas’ e ‘econômicas’. Para a ANT, como agora já sabemos, a definição do termo é outra: não designa um domínio da realidade ou um item especial; é antes o nome de um movimento, um deslocamento, uma transformação, uma translação, um registro. É uma associação entre entidades de modo algum reconhecíveis como sociais no sentido corriqueiro, exceto durante o curto instante em que se confundem” (LATOUR, 2012, p. 99).
As entidades dos diversos campos – podemos dizer assim – estão sociais como decorrência de uma associação, e não são sociais, sempre, essencialmente, aprioristicamente (15). Se a rubrica “social” passa a poder contemplar elementos de todos os campos, então o próprio conceito de “ator” deve ser expandido. Para a ANT, qualquer coisa que modifique uma situação fazendo diferença é um ator – ou, caso ainda não tenha figuração, um actante. É claro que este reconhecimento não conclui que os actantes sejam determinantes da ação:
“A ANT não alega, sem base, que os objetos fazem coisas ‘no lugar’ dos atores humanos: diz apenas que nenhuma ciência do social pode existir se a questão de o quê e quem participa da ação não for logo de início plenamente explorada, embora isso signifique descartar elementos que, á falta de termo melhor, chamaríamos de não humanos” (LATOUR, 2012, p.109).
Um exemplo: as grandes cidades vivem, quase sem exceção, problemas diários com os engarrafamentos de veículos. Nos horários de rush, milhares de pessoas permanecem paralisadas entre destinos, por conta da incapacidade pública em administrar o transporte dos cidadãos. Uma abordagem sociológica tradicional tenderia a considerar, ao investigar esse fenômeno, as pessoas envolvidas, as instituições, o poder público, os modelos políticos, em teoria e na prática; tenderia, muito provavelmente, a partir de uma modelização prévia,de uma explicação preliminar sobre o social para, em seguida, tentar encaixar o fenômeno concreto. Poderia optar por privilegiar a agência em sua investigação, no que o olhar do investigador seria atraído por alguns elementos, ou privilegiar a estrutura, fazendo, com isso, outras escolhas. Poderia verticalizar seus procedimentos, olhando as relações de poder de cima para baixo, do instituído ao instituinte, ou ao contrário; ou horizontalizá-las, procurando enxergar as micro-histórias contidas no engarrafamento.

Alguns pontos de distinção merecem um recorte didático: a abordagem tradicional não consideraria, em momento nenhum, os carros como “atores” no engarrafamento, por mais que sua presença (em certo momento e em certa quantidade) seja o fator mais determinante para a ocorrência do fenômeno (16). Sim, porque se o transporte predominante fosse a bicicleta, por exemplo, não existiria o engarrafamento (17). A abordagem tradicional, também, não se aproxima do fato social desarmada de uma teoria prévia, seja qual ela for. Não se achega desinformada. Não parte, apenas, da descrição dessa menor parte que é a interação, considerando-a como tudo o que há, para construir uma rede heterogênea momentânea.Se os carros são importantes, o são os sinais de trânsito. E as normas de trânsito. E os cintos de segurança (18).

 Quando estas relações – quando as redes – são fortes e estabilizadas, elas somem de nossa percepção, são subsumidas pelo todo maior e mais dinâmico. Podemos dizer que ocorrem pontualizações, ou seja, ocasiões em que aquele fragmento de rede se encontra de tal forma integrado e consistente que podemos ignorá-lo como sendo um todo. Cotidianamente, não andamos identificando e dando atenção a todas as redes pelas quais transitamos e que se formam e desfazem; as tomamos como dadas, e ponto. Porém, quando a expectativa é quebrada, quando a rotina é rompida e esse contrato informal não é cumprido, descobrimos uma complexidade inaudita, a interação de inúmeros elementos inesperados.

Por exemplo, se em nossa rotina não vivenciamos a ocorrência dos engarrafamentos. Se cumprimos um ritual diário de acordar na mesma hora, praticar a mesma higiene, alimentação e saída para o trabalho, dirigindo nosso veículo por um percurso sempre vencido no mesmo tempo. Trajeto ao som da mesma estação de rádio, ouvindo as notícias do dia. Esta descrição sintetiza – por isso obscurece – a presença de um sem número de humanos e não humanos compostos para performar o cotidiano, para atualizar o real. São pessoas além do próprio sujeito da narrativa (guardas de trânsito, outros motoristas), são semáforos e quebra-molas, são combustíveis e lubrificantes, são as normas de trânsito e as condições meteorológicas. Tudo tido como desprezível porque a rede, funcionando bem – pontualizada – se esconde em uma relação gestaltiana entre figura e fundo.

Entretanto, se outro humano, em outro ponto da rede, porque enfrenta problemas familiares (descobriu recentemente que o filho adolescente está se envolvendo com drogas na escola), esqueceu-se de revisar o automóvel (que vinha dando sinais inequívocos de que precisava ser levado a um mecânico) e o mesmo quebra no meio da estrada, obstaculizando o tráfego em um ponto da rodovia no qual nunca isso antes aconteceu, nosso protagonista terá de vivenciar um engarrafamento inaudito, que romperá furiosamente com sua rotina, com seu cronograma diário de atividades, expondo a intrincada teia heterogênea de relações entre humanos e híbridos da qual ele faz parte – sem ter atentado nunca para isso – e que é a camada explicativa mais profunda de toda a realidade a sua volta (19).

Chegamos a outro conceito básico da ANT, que é o de tradução. Se tudo o que existe são redes heterogêneas compostas de interações diversas entre elementos, a sociologia correspondente a esta ontologia deve se interessar por
...como atores e organizações mobilizam, justapõem e mantêm unidos os elementos que os constituem. Como atores e organizações algumas vezes conseguem evitar que esses elementos sigam suas próprias inclinações e saiam. Como eles conseguem, como um resultado, esconder, por um certo tempo, o próprio processo de tradução e assim tomar uma rede de elementos heterogêneos, cada qual com suas inclinações, em alguma coisa que passa por um ator pontualizado (LAW, 2012).
Tradução, portanto, é essa criação de composições, de resultantes efêmeras que respondem como atores, mas que são, em si mesmas, redes também. Na tradução, aos actantes são atribuídos papéis, identidades, interesses, cursos de ação a serem seguidos – que eles podem seguir ou não – mas que não existem determinados de fora, porém sempre de dentro da dinâmica própria da rede. Segundo CALLON (1986): “[tradução é] uma definição de papéis, uma distribuição de papéis e o delineamento de um cenário.” O homem que usa um celular enquanto caminha pela avenida cheia de engravatados representa uma tradução, porque o ator que ali é visto e que passa despercebido, representa uma rede muito maior, ali sintetizada, subsumida na rotina, e que mobiliza o sujeito do celular, sua prótese (o aparelho), todos os outros atores que viabilizam o funcionamento do celular (técnicos, itens eletrônicos, etc). Esta tradução será tão mais convincente quanto mais os actantes angariarem aliados dentre os outros actantes, de modo a estabilizar a tradução.

Já podemos arriscar percorrer aquela ponte entre Agamben (dispositivos e profanações, nosso corte) e a ANT (nosso fundo). Para aquele autor, como vimos, interessa extrapolar o entendimento proposto por Foucault sobre os dispositivos, radicalizando o conceito ao ponto de dividir o real em dois grandes grupos: os viventes e os dispositivos, sendo a incessante relação entre eles a geradora dos processos de subjetivação. Os autores aqui trabalhados propõem que os viventes humanos se assujeitam em um processo que é sempre uma relação de poder, em sentido mais amplo e pulverizado, como nos propõe Agamben, destacando o cenário capitalista contemporâneo; e interessa
entender profundamente este processo de criação de sentido.

Graças à antropologia simétrica, podemos ir além das relações de poder entre homens, assim como de um social feito de homens, incluindo em uma mesma malha (rede heterogênea) todos os actantes que fazem poder pontualmente, momentaneamente, e, agindo no sentido inverso da abordagem sociológica tradicional, entender esta gênese mínima do poder.

Tendo cruzado a ponte, chegamos ao que nos interessa: o aluno do CMRJ.

*****

(1) Tomamos como base, para fim dessa exemplificação, o ano em que o Instituto ocupou o endereço da Rua Mariz e Barros.

(2) Nesta citação, ao mesmo tempo em que se confirma a existência do dispositivo como estratégia, já que ele se presta à condução do sujeito, se apresenta a possibilidade da liberdade individual de desbordá-lo (porque é um obstáculo).

(3) Hyppolite, mencionando Hegel, lembra a distinção entre “religião natural” e “religião positiva”. A primeira designa a relação espontânea do humano com o divino; a segunda, o conjunto de crenças, ritos, regras que, em determinado momento de determinada sociedade, são impostos ao indivíduo para a vivência da religião (AGAMBEN, 2009, p. 30).

(4) Em AGAMBEN (2007), a ampliação do alcance do que é um dispositivo (uma grande categoria complementar aos viventes) pode parecer desfocá-lo como instrumento de uma relação de poder, se a pensamos como relação vertical, mas – talvez aproximando a definição de sua origem em Foucault – identifica melhor o dispositivo como instrumento da microfísica do poder. Esclarecendo: fragmentados como na proposição de Agamben, sendo tudo aquilo que entra em relação com os viventes, sujeitando-os, os dispositivos se prestam melhor ao entendimento do que seja “poder” em sua versão atomizada, cotidiana, a qualnão se presta mais nos dias de hoje – como o autor irá concluir – à ideologia.

(5) Isso pode produzir a impressão de que a categoria da subjetividade no nosso tempo vacila e perde consistência; mas se trata, para ser preciso, não de um cancelamento ou de uma superação, mas de uma disseminação que leva ao extremo o aspecto de mascaramento que sempre acompanhou toda identidade pessoal (AGAMBEN, 2009, p.42).

(6) Ainda no interesse de melhor situar o termo “dispositivo” entre os vários autores que dele lançam mão, citamos DELEUZE (1994) quando, descrevendo os diversos componentes do dispositivo foucaultiano – linhas de visibilidade, de enunciação, de força, de subjetivação, de brecha, de fissura, de fratura –, se detém por mais tempo sobre as linhas de subjetivação, reconhecendo, em primeiro lugar, a herança deixada por Foucault aos seus seguidores, quanto à investigação de outras formas de subjetivação que não aquelas por ele estudadas; em segundo lugar, tomando para si a parte que lhe cabe dessa herança-missão, sugere a existência e relevância dos processos de subjetivação dos excluídos, daqueles não pertencentes à nobreza, enfatizando, neste ponto, que a grande certeza é a não existência de universais, que tudo são variações. Entendemos que esta leitura específica de Foucault por Deleuze vai ao encontro do proposto por Agamben e prepara o terreno para, mais à frente, as colocações da antropologia simétrica e da teoria do ator-rede (LATOUR, 1994 e 2012; LAW, 2012). Também em DELEUZE (1994) encontramos a descrição do processo de transformação de uma sociedade disciplinar, na qual o controle se dava de fora para dentro, como no processo de assujeitamento da pessoa pelo Estado, para uma sociedade de controle, na qual o controle já se encontra interiorizado, introjetado.

(7) AGAMBEN (2007) observa que a verdadeira origem da palavra religião é o latim relegere, e não religare. O primeiro indica a atitude de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as relações com os deuses, a inquieta hesitação (o “reler”) perante as formas – e as fórmulas – que se devem observar a fim de respeitara separação entre o sagrado e o profano (p.66). Religião, assim, tem a ver com o próprio ato de separação (no sentido de sacralizar, consagrar) e não com o ato de religação.

(8) O conceito de homo sacer (AGAMBEN, 2010) pode ter potencial explicativo para a complexa relação entre a formação dos militares brasileiros – em particular os do Exército –, conforme investigada por MAGALHÃES (2010) em sua conceituação da “pedagogia do guerreiro”, e as demandas tecnicistas da sociedade atual.

(9) E nada é mais impressionante do que o fato de milhões de homens comuns conseguirem realizar na própria carne talvez a mais desesperada experiência que a cada um seja permitido realizar: a perda irrevogável de todo o uso, a absoluta impossibilidade de profanar (AGAMBEN, 2007, p. 74).

(10) “Os críticos desenvolveram três repertórios distintos para falar de nosso mundo: a naturalização, a socialização, a desconstrução. Digamos, de forma rápida e sendo um pouco injustos, Changeux, Bourdieu e Derrida. Quando o primeiro fala de fatos naturalizados, não há mais sociedade, nem sujeito, nem forma do discurso. Quando o segundo fala de poder sociologizado, não há mais ciência, nem técnica, nem texto, nem conteúdo. Quando o terceiro fala de efeitos de verdade, seria um atestado de grande ingenuidade acreditar na existência real dos neurônios do cérebro ou dos jogos de poder” (LATOUR, 1994, p. 11).

(11) Neste ponto, cabe inserir a diferenciação feita pelo autor entre as “matérias de fato” e as “matérias de interesse” (LATOUR, 2004). Criticando os rumos de seu questionamento sobre a objetividade da ciência, Latour propõe uma nova forma de empirismo, já que a forma anterior foi desacreditada pela exacerbação da dúvida (que ele chamou de “revisionismo instantâneo”). Retornando à Heiddeger, o qual discute profundamente a diferença entre “coisas” e “objetos” – atribuindo valor e relevância estética as primeiras (porque manufaturadas, ou seja, por terem certa relação de criação com o homem) e desprezando as segundas –, Latour propõe que se considere a mesma relevância aos objetos. Para tanto, é necessário desmontar a diferença imposta pelos cientistas, os quais sempre distinguiram o que seria sério, objetivo, racional – a “matéria de fato”, livre do fetichismo; do que seria ingênuo, repositório dos desejos, das relações de dominação – a “matéria de interesse”. Concluindo que toda matéria de fato começou sendo uma matéria de interesse, Latour sugere pela consideração de todos os olhares na composição das coisas; não só o olhar da tecnologia, mas das humanidades: “o crítico é aquele para quem, se algo foi criado, é frágil e merece ser cuidado” (LATOUR, 2004, p.246).

(12) Mantivemos a sigla em inglês, como o autor, para aproveitar a referência à formiga (ant), que também percorre um longo caminho, centímetro a centímetro, como que cega e obcecada: “Uma formiga (ant) escrevendo para outras formigas, eis o que condiz muito bem com o meu projeto!” (LATOUR, 2012, p.28).

(13) Primeira fonte de incerteza” (LATOUR, 2012, p. 49 a 69).

(14) Segunda fonte de incerteza” (id, ibid, p. 71 a 96).

(15) “Assim, para a ANT, social é o nome de um tipo de associação momentânea caracterizada pelo modo como se aglutina assumindo novas formas” (id, ibid, p.99-100).

(16) Uma exceção a título de confirmação é o trabalho sobre automobilidade de John Urry (2004, 2011), que coloca o automóvel como o menos estudado dos elementos-chave para entender a mobilidade em tempos de globalização (como o computador, a televisão, o cinema). Seguindo um tratamento da questão próximo ao da Teoria do Ator-Rede (ANT), Urry rastreia a rede entre a gigantesca indústria automotiva e o consumo gigantesco de automóveis; as demais indústrias que se estabelecem subsidiárias do automóvel, como a de construção de estradas, de peças e acessórios, de combustíveis; a privatização da mobilidade que se impõe subordinando outras mobilidades (o pedestre, o ciclista, etc); a mobilização da arte para veicular uma associação entre a ‘boa vida’ e a mobilidade automotiva; e a gigantesca mobilização de recursos naturais e os respectivos danos causados pelo seu consumo. A figura do ‘motorista de carro’ (car-driver) é exatamente este híbrido do humano e da máquina, mas também – e principalmente – a rede estabelecida entre motoristas, indústrias, normas de trânsito, produtos industrializados diversos; este todo que favorece a ‘affordance’.

(17) “Segundo a ANT, se quisermos ser um pouquinho mais realistas, em relação aos vínculos sociais, que os sociólogos ‘razoáveis’, teremos de aceitar isso: a continuidade de um curso de ação raramente consiste de conexões entre humanos (para os quais, de resto, as habilidades sociais básicas seriam suficientes) ou entre objetos, mas, com muito mais probabilidade, ziguezagueia entre umas e outras” (LATOUR, 2012, p. 113).

(18) Mas o caso geral que é enfatizado pela teoria do ator-rede é esse: se os seres humanos formam uma rede social, isso não é porque eles interagem com outros seres humanos. É porque eles interagem com seres humanos e com muitos outros materiais também (...) E esse é o meu ponto – se esses materiais desaparecessem também desapareceria o que às vezes chamamos de ordem social. A teoria do ator-rede diz, então, que ordem é um efeito gerado por meios heterogêneos (LAW, 2012).

(19) O exemplo nos remete a outro conceito importante na ANT, que é o de caixa-preta, como um conjunto tão bem resolvido que dele dispomos sem a ele darmos atenção. É o fragmento de rede simplificado ao ponto de aparentar uma unidade interessante, uma ilusão de conjunto que nos dispensa a preocupação. Quando surge o problema, o imponderável, vem a tona a complexidade oculta pela simplificação. É necessário, então, abrir a caixa-preta, esclarecê-la, eviscerar a intrincada rede e seus elementos.

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